sábado, 29 de dezembro de 2012

1996 (com Fernando) - parte II


            Deitada na cama, Mariana sorria depois de muito tempo chorando de saudade antes de dormir, pois parece que à noite era a hora que mais doía tudo.
            Ela sorria agora lembrando que Fernando tinha contado que durante o ensino médio tinha se metido em muitas brigas, por isso tinha sido tão simples tirar alguém da sua própria cadeira quando resolveu sentar perto dela. E no final, meio que se desculpando pela ousadia e pelo temperamento, deu de ombros:
            - Aquele carinha nem queria sentar ali mesmo!
            Ela ria sozinha olhando o teto do quarto naquele sábado à noite, indiferente aos programas que os da idade dela gostavam de fazer. Tinha sido uma semana menos difícil que as anteriores, logo no começo da amizade deles, pois agora ela resistia mais ao ímpeto de expulsá-lo para longe dela. Dava menos respostas atravessadas às perguntas dele e estava aprendendo que ele era persistente sem ser chato.
            Bem longe, ouviu o telefone tocar, mas não iria atender, estava de pijama, dentes escovados, pronto para “cair nos braços de Morfeu”, como diria a tia Tereza, irmã da mãe.
            - Mari, é para você.
            - Diz que eu estou dormindo.
            - Bom, até disse, mas esse rapazinho não engole essas desculpas esfarrapadas não.
            Ela podia até adivinhar o sorriso dele do outro lado da linha.
            - Alô. – a voz tentava disfarçar a ansiedade. Era ele mesmo? Não, não podia, ele não tinha seu número.
            - Oi, Mari, queria saber se você quer ir ao cinema comigo. – a voz dele era inconfundível. Fernando.
            - Eu estou dormindo. – ela disse quase rindo.
            - Mesmo? Podia jurar que não. Se você for sonâmbula vou rir muito da sua cara.
            Moço insuportável – ela pensava.
            - Bom, já que não quer sair, estou indo aí levar um filme para assistir com você e com a sua mãe.
            - Claro que não, está tarde.  E minha mãe não gosta de visita assim, sem avisar.
            - Pois passe para ela que vou avisar.
            Gesticulando para a mãe ser sua cúmplice e negar o convite, Mariana entregou o telefone. Não podia ouvir o que ele dizia, mas a mãe toda contente já abria um sorriso enquanto ouvia o que o rapazinho queria.
            - Claro que pode, meu filho, está tão cedo. – escutou um pouco e continuou. – Não, ela não ia dormir agora não, ela estava estudando, já disse até para ela não estudar tanto. É bom que ela se distraia. – mais um instante escutando a voz do outro lado da linha. – Qualquer um que você trouxer, meu filho, pode vir.
            Mariana de boca aberta e cara fechada, mal podia conter a raiva... Raiva mesmo? Ou ela estava se divertindo com aquele moço insuportavelmente inconveniente e ... Procuraria outro adjetivo que lhe coubesse. Bom, ela ia ter o tempo de um filme para encontrar.
            Alguns minutos depois, ele chegou trazendo filme e pizza. Muito educado, apresentou-se à mãe e esta, toda solícita e simpática, recebeu o moço como se já o conhecesse há muito tempo. Mais conversaram do que realmente prestaram atenção ao que passava na tela à frente deles, ficaram sabendo muito da história uns dos outros.
Fernando era o irmão mais velho e a irmã estudava na mesma escola. Praticava judô desde os cinco anos por recomendação do pediatra “para controlar a personalidade impulsiva”, mas ele não concordava, achava-se muito tranquilo, mas continuava indo à academia para satisfazer a mãe. Estava repetindo o ano escolar porque as notas não eram muito boas, além de ter tido catapora no período de recuperação, o que o desestimulou mais ainda com os estudos, mas tinha sido interessante, porque agora ficava na mesma sala que Mariana. Falava abertamente sobre isso, sem esconder sua satisfação, mas sem expor a moça que estava tossindo, engasgada com refrigerante.
Dona Socorro contava que sentia muita saudade do marido que passava a maior parte do tempo fora de casa, pois trabalhava em uma plataforma de petróleo. Investia esse tempo fazendo alguns cursos de artesanato, culinária e pintura. Mariana era seu maior orgulho, era uma excelente aluna e já tinha decidido que faculdade faria: Engenharia Civil.
Mariana não falava muito, apenas se manifestava quando a mãe ia se aprofundar demais em assuntos muito íntimos relacionados ao ano anterior, coisas que ela preferia não mencionar na frente de Fernando, mesmo achando que ele sabia de muitas daquelas cicatrizes. Mais ouviu que falou, afinal aquele rapazinho gostava tanto de conversar, abria assim tão fácil sua vida que ela estava encantada, pois não tinha essa capacidade. A conversa também serviu para que ela entendesse o episódio da mudança de lugar na sala, Fernando não era muito de argumentar quando queria algo e, se ele ia mudar de lugar, nada o impediria de tomar a cadeira de quem fosse, afinal quem o desafiaria? Ela imaginou quantas vezes o rapaz já teria visitado a sala da coordenadora, mas preferiu não perguntar. A estratégia do judô não tinha contribuído muito para apaziguar a ferocidade do rapaz, mas, analisando o outro lado, ele parecia doce enquanto conversava com sua mãe, tímido quando admitiu não saber dançar e compreensivo quando, pacientemente, propôs esperar o tempo dela.
Eram quase 23h00 quando a mãe dele veio buscá-lo e dona Socorro se despediu prometendo convidá-lo para almoçar com elas num sábado. Mariana não parecia muito interessada, estava tão pensativa diante de tanta coisa que ouviu do rapaz que não dimensionou o convite.
A mãe parecia nas nuvens: que rapaz educado, Mariana! Que rapaz isso, que rapaz aquilo! Que menino bonzinho! Ok, ela não iria contar agora como o menino bonzinho assustava os colegas de sala, deixaria a mãe com a impressão boa que ele tinha causado.
            Enquanto não voltava aos braços de Morfeu, a moça tentava analisar as entrelinhas do discurso do rapaz. Mas seria que tinha entrelinhas? Será que ele não era mesmo tão simples como demonstrava ser? Será que...? Mariana dormiu e talvez até sonhou com o rapaz, mas não é de bom tom invadir os sonhos de mocinhas tão sérias como ela.
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            Fiquei ansioso, olhando horas e horas para o papelzinho que minha irmã me entregou com o telefone da Mariana. Mas, no final, nem precisava de tanto drama: deu tudo certo, a mãe dela me ama, agora falta conquistar a filha.
            Preciso controlar essa minha personalidade difícil e essa minha ansiedade. Droga! Ela não precisa conhecer meu lado rebelde todo de uma vez. É claro que não vou mentir, mas também não preciso assustá-la, nesse instante é tudo de que não preciso. Como da outra vez não! Droga! Por que, às vezes, eu não sei conversar? Por que não consigo colocar em prática o que andava treinando? Sou tranquilo, mas meus limites são muito estreitos em algumas situações...
            Finalmente, depois que crio coragem para ligar e jogo maior charme para cima da mãe dela, a menina resolve dizer que está dormindo! Mas não eu ia recuar nem um centímetro da minha decisão: posso ser tímido, mas uma vez que decido algo, ninguém me segura. Acho que é nesses momentos que, quando desafiado, sou irracional. Na escola não posso mais, se eu aparecer na sala da coordenadora, ela disse que será a última vez. Na penúltima, o menino na cadeira ao meu lado estava de nariz quebrado!  Droga! Mas quem mandou ele mexer com minha irmã? Nem ligo! Bom, não ligava, agora preciso terminar o ensino médio e sair dali antes que minhas chances esgotem: as que ainda tenho com Mariana e com a coordenação.
            Mariana estava muito linda e, com aquele ar de quem realmente ia dormir, parecia menos hostil. Droga de menina difícil! Mas todas as vezes que ela quis me rejeitar, parecia mais desafiador como numa luta de judô em que se usa a força do adversário contra ele mesmo. Ah, Mariana, serei seu desafio e você não escapa! Passei o ano inteiro lutando contra minha timidez, mas agora, na mesma sala que você, usufruindo de pequenas oportunidades, vou fazer você me querer como aquele carinha sem sal não soube fazer. Ainda bem que ele sumiu! Perdi a primeira luta, mas agora o campeonato é meu!
            A mãe dela é bacana, parece aliada e basta me comportar como a mamãe me ensinou que serei a visita mais constante e agradável daquela casa. Ela conversa bastante, vou descobrir tantas coisas sobre a Mari que ela nem imagina. Não sou um menininho idiota, sou um homem decidido e terei que quero. Mas vou dar um tempo para ela, sei como deve ter sido ruim durante o ano passado quando a amiga dela morreu. Eu ia para a mesma festa e no mesmo carro, mas, na última hora desisti, teria dança demais para meu pequeno repertório. Credo! A notícia do acidente desabou em cima de todo mundo da escola, mas acho que a Mari foi a mais sentiu, afinal era a melhor amiga dela. Já senti coisa parecida, mas não quero pensar nisso agora. Quero dormir com o cheiro da Mari na minha memória, com o sorriso dela cravado no meio do meu cérebro, decorar os gestos tímidos e mal disfarçados para quando ela quiser fingir que não me quer por perto. Ah, Mariana, sei exatamente que essa sua mania de rejeitar as pessoas é medo de que tudo se repita, já senti isso, apenas reagi diferente de você.
            Droga! Amanhã tenho que acordar cedo, mas ainda estou aqui pensando que não dei um beijo nela. Pensando que não sei quanto tempo vou ter que esperar por ela, mas prometi e vou cumprir. Preciso dormir, preciso dormir! Tenho luta amanhã, mais um domingo de campeonato e vou ganhar, sempre ganho! Quando vou ganhar a Mariana? Droga! Por que eu disse que ela ia ter que pedir para me beijar? Sou muito autoconfiante! Isso nem sempre me ajuda! Amanhã penso no que vou fazer com essa menina!

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