quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

1996


            Mais um ano letivo começava e eu não podia fazer a menor ideia de que surpresas ele me preparava. “Aninho chato”, eu ia resmungando enquanto seguia pelo caminho tão conhecido que talvez já tivesse até minhas pegadas.
            Mas nada seria como no ano anterior quando conheci e perdi minha melhor amiga e meu grande amor, ambos tão eternos e valiosos que nem sabia o que ia fazer com tanto sentimento sufocado dentro de mim.
            A amiga, querida Carolainne (e escrevia assim mesmo!), havia viajado para um festa no interior, qualquer uma dessas vaquejadas, e perdido a vida na viagem de volta. Só havia me restado algumas fotografias, pouquíssimas, pois até então eu não apreciava posar e ser fotografada. Ficaram também as risadas, os choros, as conquistas e as aulas de biologia perdidas enquanto nos escondíamos pela biblioteca. Dentro de mim restou também um coração em cacos que nunca mais se colaria. Era o que eu pensava.
            O amor veio depois, quase como um analgésico. A tragédia com a amiga fez com que um monte de gente se aproximasse de mim com ares de pena na mesma medida que eu as fiz se afastar, o que era minha especialidade. Não julgava o caráter de ninguém, nem para saber se era sincero o pesar ou somente uma pena mal fingida, disso tudo nada me interessava, mas ele insistiu, perseguiu, se preocupou e me acompanhava calado pelo trajeto tão conhecido que eu fazia após as seis aulas de todas as manhãs. Lá íamos nós dois, eu e o Daniel, no caminho da minha casa, todos os dias até que o ano letivo terminasse.
            Ele era paciente demais. Tolerante e nunca se exasperava com as minhas constantes tentativas de afastá-lo. Ouviu meus desabafos e meus xingamentos, os palavrões que eu gritava nas ruas desertas do nosso bairro quando a dor saudosa da amiga extrapolava os limites do peito. E foi ele que me fez dar a primeira risada após muitos meses de luto introspectivo. Na hora, quase fiquei com raiva dele, mas após alguns segundos de surpresa, tive um desses raros momentos epifânicos dos personagens da Clarice Lispector e entendi. Era com ele que eu queria ficar em todos os meus momentos, pois aquele rapazinho lindo, de cabelinho muito preto e escorrido pelos olhos, também queria ficar comigo, queria rir com ele e talvez chorar, mas nós não sabíamos que seria por tão pouco tempo.
            O caminho para casa ficou mais curto, às vezes o fazíamos completamente calados, em outros ríamos sem saber direito o porquê, em outros dias sentávamos em alguma calçada e esquecíamos por alguns minutos que tínhamos que chegar em casa antes que nossas mães chamassem a polícia, afinal não era uma época de celulares. Lembro que, independente do humor, parecia mais curto o trajeto porque queríamos ficar cada vez mais tempo juntos.
            Até que um dia, enquanto íamos caminhando lentamente lado a lado, tão lentos que poderíamos contar nossos passos, ele, sem tirar os olhos dos cadarços desamarrados, me disse:
            - Meu pai foi transferido. Você sabe, já te disse várias vezes que ele ama o serviço militar, né?! Dessa vez vamos morar em Natal, qualquer hora eu também vou para a Marinha, é meu destino.
            Não sei direito como me senti, acho que parecia mais como um tornado nas minhas entranhas ou um dia de guerra no Afeganistão dentro do meu estômago. Não sabia direito como organizar meus pensamentos, e no final, antes de entrar em casa, apenas disse:
            - Boa viagem!

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