sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Maqu(im)agem

Se quiser me conhecer repare na minha maquiagem:
Depois daquela noite em que eu não dormi direito vou exagerar no corretivo, portanto seja sensível e não brigue comigo, estarei cansada e com sono.
Quando eu usar batom vermelho é que eu estou me sentindo sexy, gostosa mesmo, então, vamos namorar...
Caso eu exagere no lápis de olho é porque eu quero que olhe nos meus olhos e se veja, veja como eu te amo, veja que é tão importante para mim que eu não sei mais viver sem você.
Caso eu esteja usando blush me convide para ir à praia devo estar precisando e será maravilhoso olhar o mar ao teu lado, conversar o dia inteiro observando o vai-e-vem das ondas, ver como a natureza é perfeita e como a vida fica bem mais agradável ao teu lado.
Mas se quiser me conhecer de verdade peça para eu lavar o rosto e, então, de alma limpa, vai poder definir se é de mim que você gosta ou da minha imagem maquiada.
Enxergue-me! 

terça-feira, 22 de novembro de 2011

O sacerdote e a feitceira (II)

Muito tempo passou até que ela abrisse os olhos. Nada acontecia.
Como o silêncio se tornou pesado demais ela resolveu abrir os olhos e se dirigiu até a porta de sua cela, que agora estava aberta. Aquilo não era ato de nenhum inquisidor, pois eles não precisavam ser discretos, principalmente ali. Mais por curiosidade do que por qualquer motivo que conseguisse imaginar – desespero? – empurrou lentamente a porta recém aberta pelo lado de fora. Estranhamente a porta cedeu e ela olhou para o corredor sombrio e não havia nenhum tipo de movimento vindo de nenhum dos lados. Tudo dormia.
A cada passo que dava sentia o cheiro de liberdade que se esforçava para evitar. Não queria nem podia se iludir que um dia pudesse encontrar de novo com ela.
Mas ao alcançar o final do corredor avistou a tênue luz da madrugada que anunciava mais uma manhã nevoenta. Talvez já estivesse bem perto do equinócio de verão. E sentiu o cheiro de fora sendo jogado no seu rosto como se fosse um abraço de um estranho.
Depois de tantos dias sem ver o mundo lá fora, com seus cheiros e suas cores, finalmente ela pode sentir o impacto da vida novamente no seu corpo. Pela primeira vez respirou de verdade, com os pulmões plenos de ar até quase explodirem. Não importava quanto suas costelas doíam nem os inúmeros pontos de dor e mais outros tantos em completa e total insensibilidade. Ela queria a vida mais que tudo. Nem podia mensurar o quanto, mas era somente isso que deseja mais que tudo.

sábado, 5 de novembro de 2011

O sacerdote e a feiticeira

A feiticeira, já sentenciada, aguardava em sua cela quando seu sono foi perturbado por um barulho distante de ferro. Parecia a fechadura sendo aberta, mas por quê? Por quem? Então ouviu sons de passos se aproximando no corredor cada vez mais. Tentou fazer cálculos mentais e para descobrir se havia chegado a hora de executarem sua sentença, mas o cérebro estava tão confuso depois de ser torturado tantas vezes que sua tentativa foi em vão.
Com o barulho dos passos se aproximando, ela recuou para um dos cantos. Já encostada na parede, temendo pelo pior, ela escutou o mesmo barulho de ferros, dessa vez já na sua cela. Ouviu nitidamente quando sua porta abriu. Tremia.
Nada aconteceu, não ouviu passos entrando no lugar, ninguém chamou seu nome.
Depois de alguns minutos em silêncio, ela apurou os sentidos e andou em direção à porta, não havia nenhum vestígio que alguém estivera ali. Estaria ela tendo uma alucinação?
Mas a porta estava realmente aberta...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Morgan le Fay

Essa é Morgan Le Fay que, de acordo com a literatura sobre rei Arthur, é irmã de Merlin. Esse quadro, que considero belíssimo, é de Anthony Frederick Sandys. 

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Despedida trágica ou cômica no espelho do banheiro

No dia em que eu for embora, as plantas ficaram aguadas.
Uma lista de supermercado vai ficar em cima da mesa da cozinha com os horários dos remédios das crianças...
Comida no microondas e congelada...
Vou dar banho no cachorro, dar-lhe comida e fazer-lhe um grande carinho! Pensando bem acho que vou levá-lo comigo...
O lixo vai ficar lá fora e as cartas, na mesinha de centro da sala... Vê se paga as contas em dia!
Desculpa, mas vou levar todos os meus CDs do Chico Buarque, você nunca ouviu mesmo...
Talvez a roupa não fique toda passada, mas fica na porta da geladeira o número da lavanderia...
Da farmácia...
Da locadora...
Do pediatra...
O pediatra mudou de endereço, lembra? Tem consulta todo mês. Não esquece...
(...)
Vou levar as crianças comigo, você nem saberia o que fazer com elas!
E com você?! Será que você vai saber o que fazer? Será que vai dar conta de tudo? Será que saberia ao menos combinar sua roupa? Será que saberia tomar o remédio na hora certa? Será que saberia se virar sem a gente?
Acho melhor você implorar para que eu fique...

Crise

            Todo mundo sabe que, raramente, mulher vai sozinha ao banheiro. Ainda não descobri se isso é um hábito social ou cultural, mas não vem ao caso agora, o que realmente importa é a variedade de assuntos que podem ser discutidos numa simples ida ao banheiro feita em dupla ou trio... Discute-se desde o ménage a trois - fazer ou não fazer eis a questão - até a pensão alimentícia dos filhos...
            Então, mal as amigas entraram no banheiro, uma desandou a debulhar as mágoas:
            - Aquele desgraçado me deixou com uma mão na frente outra atrás, acredita?
            - Nem vem... ele era tão mão aberta....
            - Era, minha filha, era. Pois fique sabendo que ele agora deu para se recusar a pagar meu cartão de crédito. Resultado: menos gasolina, menos salão, menos shopping... Ai, amiga, estou tão estressada, acho que estou com... com... como é mesmo o nome daquilo? Síndrome do pânico, é? Acho que vou processá-lo por isso, deve dar uma grana...
            - Estresse, o nome disso é estresse, mas é de não poder mais ir ao shopping com o dinheiro dos outros. O nome disso é desocupação aguda crônica. Amiga, você tem diploma com nível superior... Valorize-se...
            - Ah, mas é tão complicado. Eu vou trabalhar? Como? Há anos não faço isso, nem sei por onde começar...  Além do mais tem as crianças...
            -Crianças? Que crianças? O Armandinho já está até comendo as menininhas, todo mundo comenta lá no colégio, e a Catarina, pelo amor de Deus, ela já faz faculdade... Está na hora, amiga, bola pra frente. Vergonha na cara!
            -Olha aí, está vendo? O moleque faz isso por causa do mau exemplo do pai. Ai, meu Deus, meu filho está na boca do povo!
            - Ele faz isso por causa dos hormônios, já estava na hora, e é bem melhor do que usar drogas. E o pai dele, ah, o pai faz o que quer, quem não pode fazer é a mãe.
            - Está vendo, é o que eu digo, eu sofro tanto... Até hoje não tenho namorado e ele lá com aquela “zinha”.
            - Nem comece com essas suas crises de auto-piedade. Além do mais você sempre namorou, pegou cada surfista gostosinho, alguns da idade do Armandinho, hein? Eu lembro bem daquele que você conheceu nas férias... Como era o nome dele?... Gustavo! Isso mesmo, ele te fez um belo tratamento de pele, eu lembro bem... Está vendo, amiga, você pode ser diferente, você é uma mulher inteligentíssima e bonita. Está precisando malhar um pouquinho e atualizar o currículo, só isso. E vamos que eu já retoquei o batom cinco vezes.
            - Você me ajuda? A procurar um emprego?
            - Ajudo. Vamos...
            - Ajuda a procurar uma academia?
            - Ajudo sim, te levo na minha, mas não conta pra ninguém que eu faço...  Vamos.
            - Só mais uma coisa, me ajuda a usar o Word? É para o currículo...
            - Certo, certo. Levo você também no meu curso de kama sutra , mas agora vamos embora...

domingo, 9 de outubro de 2011

Vestígios

Vasculho as prateleiras buscando você. Qualquer rastro, qualquer indício, qualquer coisa.
Minha busca se amplia, quero provas de que você passou na minha vida. Quero palavras, declarações de amor em rimas, crônicas, ficção ou realidade. Pode ser em cores ou preto e branco, pode ser de dia ou à noite, mas quero saber como foi, o que eu senti e o que fez em mim.
Os vestígios daquelas tardes de domingo em que sumíamos com o controle da TV e, às gargalhadas, discutíamos o existencialismo em Sartre e em Clarice. Ou simplesmente nos olhávamos até decidir o que fazer com nossa sede e nossa fome de nós mesmos. Quero o sabor da solidão de quando você não esteve e a amarga presença da tua ausência, que eu tanto insisti em lhe explicar e você fingia que não entendia.
Nunca senti sua falta, só conseguia sentir sua presença: nos quadros, nos livros, nos discos de vinil empilhados tristemente na estante. Eles só ficavam eufóricos na sua presença, caso contrário, me abandonavam.
Quero encontrar com aquelas horas infindas de abandono quando não dormia com você, pois fingia querer dormir sozinha e você ia para sua casa. Nem era abandono de verdade!
Mas não encontro nada disso. Fiz faxina das suas digitais na minha pele, das suas marcas pelos meus lençóis... Exterminei qualquer possibilidade de sentir a necessidade de ter você!
Matei, queimei, afoguei as cinzas em inúmeros goles de tequila e curti a ressaca do fim disso tudo. “Isso” que nunca teve nome, pois era sublime, era sagrado, era intocável e se tornou urgente demais ao ponto de que não suportasse mais respirar sem você. Então...
Então, eu abri mão. Não podia, como nunca pude, precisar tanto assim! Não foram esses os planos que fiz, não quero nem posso perder o controle de mim mesma dessa forma como você faz comigo!
Abri mão e o expulsei da minha vida para sempre, fiz de uma maneira que fosse definitiva. E agora, como se fosse dependente química ou física, vasculho escondidamente todos os recantos buscando por você.
Mas não quero encontrar seus vestígios...

domingo, 11 de setembro de 2011

Passageiros

         A vida é uma estrada por onde seguimos sem que saibamos realmente onde vai dar. Às vezes longa, às vezes curta. Um caminho que, sem um mínimo de lucidez, é inviável trilhar. Somos todos passageiros nessa aventura insana que é a vida. Há os que descem antes da hora, há os que ficam por pura teimosia ou ousadia. E nessa trajetória, pode-se fazer o melhor ou o pior, não importa, o que não se deve é ficar sem fazer nada, esperando que outros te levem de carona.
        A estrada pode ser asfaltada ou carroçal, mas o que isso importa quando se é um passageiro? Apenas devemos seguir, sequer olhar para trás, pois o que importa é o que vem pela frente.
        Sigamos, juntos ou solitários, passageiros errantes da vida.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Aqui entre nós

            Sabe-se que conversar com os botões é uma prática antiga e usual. Não se sabe se é uma prática mentalmente saudável considerando que os botões não respondem, na verdade não tendo boca nem ouvido como seria possível conversar com eles?
            Verdade seja dita que do jeito que nós, mulheres, conversamos pelos cotovelos e até pelos joelhos, nada mais justo e agradável do que ter nossos próprios botões como interlocutores. Falar, falar e falar sem ninguém para nos dizer que estamos sendo chatas ou repetitivas ou “rodeando demais para chegar ao assunto”. Enfim, o melhor amigo da mulher é o botão. E foi no banheiro do Buffet que começou a amizade, ele lá distraído e ela sozinha, arrependida pelo tanto que tinha comido...
            É... Você fica aí me olhando com essa cara de “socorro, eu não agüento mais segurar a barriga dessa gorda!” Podia pelo menos me dar um conselho: o que você acha? Vomito ou não vomito? Eu não sou tão gorda assim, você está me conhecendo agora, fiz esse vestido só pra essa festa, mas é que eu comi demais, estou ansiosa, sabe?! Eu como a minha ansiedade e dá nisso... Estou pensando em começar a vomitar quando eu comer assim, mas tenho medo de virar anoréxica. Acho horrível gente muito magra, mas também uma gordinha como eu não dá mesmo! Roupa nenhuma fica bem em mim, tudo aperta, marca, fica a banha pulando de lado e para o outro, calça de cintura baixa nem pensar. Só tenho 19 anos, mas me visto feito uma velha, as roupas todas frouxas para não marcar a barriga, saia comprida para não aparecer as celulites. Se bem que mulher magra também tem celulite, né?! Vejo umas na praia, sabe? Fico olhando todo mundo antes de ficar só de maiô. Eu só uso maiô, meu último biquíni vesti quando tinha sete anos. Mas eu olho aquelas meninas bonitinhas desfilando na praia e fico morrendo de vergonha, além de gorda fico branca feito o Gasparzinho. Pareço uma tapioca, branca e redonda.
Mas então, eu vomito ou não? Dói, sabe?! A garganta. Mas é claro que você não sabe, você não tem garganta. Mas a verdade é que dói, dá uma sensação tão ruim, além disso, tem o gosto amargo que fica na boca. Eca, que horrível, deu vontade de vomitar só de lembrar. Mas não tem outro jeito de não continuar balofona, dieta eu não consigo fazer e comer folha? Não sou nem camaleão! Remédio? Nem pensar, tenho medo de ficar dependente, já pensou que mico eu numa clínica de desintoxicação? Que medo! Tem a academia, né? Mas dá uma preguiça, tomar banho para ir, tomar banho depois que chega... Além do mais já reparou que só quem vai pra academia são as gostosas? O que elas estão fazendo lá? Humilhando pessoas como eu. Vê se tem lógica eu pagar pra ser humilhada? As pessoas já fazem isso de graça comigo, melhor gastar dinheiro com outras coisas... Sonho, brigadeiro, quindim, pudim, filé a parmegiana, sanduíche do Mc Donald´s, só coisa gostosa! Percebeu que tudo que é gostoso é super calórico? É, porque nem venha me convencer que alface é uma coisa gostosa porque nem você se convence disso. Rúcula, peixe grelhado, filé de frango na chapa, isso é comida de gente triste, infeliz, desorientada. Aliás, desinformada, não sabe nem onde estão as coisas boas da vida.
            Quer saber, meu amigo, não vou vomitar coisa nenhuma e ainda tem um monte de docinho bonitinho e gostoso lá fora para eu comer. Foi bom conversar com você, espero encontrá-lo mais vezes, foi esclarecedor e animador. Estou me sentindo tão bem, tão leve... Quer dizer, leve nem tanto, afinal eu nem vomitei, graças à você, e estou me sentindo ótima por isso.  Tchau!

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Platonismo

     Eu deveria estar de brincos, por que deixei no carro?
                Também poderia ainda estar de maquiagem, mas naquele dia havia trabalhado o dia inteiro e, no fim da tarde, meu rosto estava um lixo de cansado. Nenhuma maquiagem no mundo daria jeito naquilo.
                Pelo menos os óculos, que dá um ar intelectual, mas tinha feito um risco enorme antes de sair da escola em que trabalhava, e estava mais atrapalhando do que ajudando usá-los naquele momento.
                Evidentemente analisei tudo isso antes de cumprimentar o professor dos tempos da faculdade que também havia sido meu amor platônico eterno. Quando o vi naquela loja de departamento, ao lado de uma criança linda que só poderia ter o seu DNA, calculei tudo isso e o primeiro pensamento foi recuar. Havia passado tanto tempo, talvez ele nem me reconhecesse. Lógico que eu nunca o havia esquecido, mesmo depois de 10 anos...
                Ponderei, medi, calculei e me joguei.
                O que eu poderia perder? Nada. Ficaria triste se ele não tivesse a menor idéia de quem eu era, mas o que era tristeza diante da possibilidade de ver bem pertinho aquele “meu” deus grego da Linguística? Nada.
                Não vou reproduzir o diálogo, é íntimo, afeta diretamente meu “eu-lírico”.
                Mas ganhei primeiro dois beijinhos no rosto, ele lembrou-se de mim, fez uma referência direta a um projeto do qual eu fazia parte na época da faculdade. Lembrou mesmo!
                Conversamos sobre um concurso que estava em andamento, eu havia passado nas duas primeiras fases e ele estaria na banca examinadora da terceira fase, mas não na mesma área a qual concorria. Quem sabe, pelo menos, ele não estaria no mesmo local de prova e eu o veria novamente...
                Depois ganhei mais dois beijinhos de despedida. E mais dois de Natal e de Ano-Novo. Ou seja, ganhei o dia.
                Fui comer ali pertinho sem conseguir pensar em outra coisa que não fosse meu tempo de faculdade. Lembrei-me do meu desempenho brilhante nas duas disciplinas que havia feito com aquele professor, participei ativamente de todas as aulas e tirei nota máxima nas duas. Tinha uma menina chatinha que disputava palmo a palmo o primeiro lugar comigo, não que eu me importasse em ser a primeira da sala, mas queria a atenção dele voltada para mim. Inventava dúvidas onde não havia e adorava quando ele virava me olhando por cima dos óculos e dizia meu nome. Na conversa que tivera com ele, há poucos instantes, percebi que ainda olhava do mesmo jeito.
                Sorri sozinha lembrando-me de muita coisa daquele tempo, mas acabei descobrindo que engraçado mesmo era que aquele tempo nem estava tão longe e eu já tinha feito tanta coisa e era tão diferente daquela adolescente de 16 anos recém ingressa na universidade. E como eu era aflita, angustiada e estressada sem motivos reais. Desastrada, estava no código genético, não havia mudado muito nessa seara.
                Pensando ainda na mulher que era e na que me transformei, lembrei que se nunca tinha passado de um amor platônico de adolescente, agora é que isso não aconteceria mesmo. E isso também era uma conquista, pois não me permitiria um sentimento tão intenso aos meus 16 anos, me percebi mais livre de mim mesma.
                Aquele reencontro foi muito bacana a curto prazo por que alimentou meu ego destruído depois de tentar enfiar Literatura dentro de algumas cabeças duras durante 9 aulas seguidas.  Deu saudade também, um pouco de melancolia, vontade de ter feito um pouco melhor, mas nem sei se era possível e também me perdoei, algo inimaginável na minha adolescência.
                Fiquei feliz e quando entrei no carro gritei como criança, afinal não dava mais para fazer isso na rua como nos tempos de faculdade.
               

Exorcismo

Tomou coragem como quem toma ópio, queria a euforia e a anestesia daquele ato. Heróico para si, insano para muitos... E quem se importava com os muitos?
Vasculhou o ambiente em busca de qualquer objeto cortante, faca ou gilete, fosse o que fosse, mas era necessário e urgente antes que o momento passasse. Não poderia se perdoar depois caso o perdesse.
Arranjou então um estilete, oxidado pelas muitas vezes em que fora usado, mas nunca para aquele fim ao qual seria hoje, agora e sem mais delongas antes que o efeito daquele surto passasse. Arrancou a blusa, botões pularam longe, e rasgou o peito. Tão rápido que se tivesse piscado teria perdido aquela visão. Começou então o processo que imaginava ser o mais dolorido de toda a vida: começou arrancando as utopias inúteis, puxou-as tão violentamente que quase trouxe junto um pulmão. Olhou-as nas mãos ensangüentadas, o que não comoveu. Continuou a esgarçar o peito e agora trazia os castelos de areia, doces construções infantis, o desejo de advogar pelos direitos humanos, a vontade de viajar pela Europa de mochila nas costas e desfilar pela muralha da China. Os sonhos fúteis de coleções toscas, vinhos nunca bebidos, passaportes não carimbados, malas nunca desfeitas, nenhum quarto de hotel bagunçado, o mar do Caribe onde não fez amor ao luar. Em seguida, quando pensava não ter mais fôlego, enfiou a mão no fundo do peito e não achou o que queria. Ainda faltava uma coisa para terminar com tudo aquilo.
Continuou procurando e quando já tinha quase o braço inteiro dentro da ferida latejante, encontrou. Agora sim, estaria terminado. Tinha nas mãos o velho amor da adolescência: saltitante, empolgante, entusiasmado, pelo qual vivera dias tão azuis e noites tão febris. Diante do qual suplicou, ajoelhou e pediu incansavelmente que não se fosse, que continuasse a iluminar sua vida como se o sol não existisse e dele emanasse a única energia que fazia a vida prosseguir. Aquele amor surrado, esmagado, mal-tratado nos momentos de ingratidão, naqueles momentos em que se acha ser possível não precisar desse mesmo amor que preenche a alma e que faz querer continuar a vida. O amor sublime, encontrado em um dia qualquer, numa praça ou num ponto de ônibus, mero detalhe, mas, que, a partir do momento do encontro, não se pode mais deixá-lo para trás, porque sequer se pode imaginar que sentido tinha a vida antes daquele encontro. 
                Com o auxílio do estilete arrancou até a última minúscula raiz daquilo. Queimaria tudo e enquanto a fogueira – pequena demais para tanta coisa – ardesse, admiraria o espetáculo, sabia que não poderia perder aquilo, era o começo de um grande momento. A era em que seria feliz, na sua vida planejada, rotineira e burocrática. Olhando a fogueira arder e aproveitando a luz oferecida por ela, suturava o corte, recompunha a pele e contava distraidamente quantos pontos eram necessários para fechar o peito. Do lado de dentro, um buraco vazio ficaria assim até o fim dos tempos, como nunca devia ter deixado de ser. Oco e seco.