terça-feira, 6 de setembro de 2011

Exorcismo

Tomou coragem como quem toma ópio, queria a euforia e a anestesia daquele ato. Heróico para si, insano para muitos... E quem se importava com os muitos?
Vasculhou o ambiente em busca de qualquer objeto cortante, faca ou gilete, fosse o que fosse, mas era necessário e urgente antes que o momento passasse. Não poderia se perdoar depois caso o perdesse.
Arranjou então um estilete, oxidado pelas muitas vezes em que fora usado, mas nunca para aquele fim ao qual seria hoje, agora e sem mais delongas antes que o efeito daquele surto passasse. Arrancou a blusa, botões pularam longe, e rasgou o peito. Tão rápido que se tivesse piscado teria perdido aquela visão. Começou então o processo que imaginava ser o mais dolorido de toda a vida: começou arrancando as utopias inúteis, puxou-as tão violentamente que quase trouxe junto um pulmão. Olhou-as nas mãos ensangüentadas, o que não comoveu. Continuou a esgarçar o peito e agora trazia os castelos de areia, doces construções infantis, o desejo de advogar pelos direitos humanos, a vontade de viajar pela Europa de mochila nas costas e desfilar pela muralha da China. Os sonhos fúteis de coleções toscas, vinhos nunca bebidos, passaportes não carimbados, malas nunca desfeitas, nenhum quarto de hotel bagunçado, o mar do Caribe onde não fez amor ao luar. Em seguida, quando pensava não ter mais fôlego, enfiou a mão no fundo do peito e não achou o que queria. Ainda faltava uma coisa para terminar com tudo aquilo.
Continuou procurando e quando já tinha quase o braço inteiro dentro da ferida latejante, encontrou. Agora sim, estaria terminado. Tinha nas mãos o velho amor da adolescência: saltitante, empolgante, entusiasmado, pelo qual vivera dias tão azuis e noites tão febris. Diante do qual suplicou, ajoelhou e pediu incansavelmente que não se fosse, que continuasse a iluminar sua vida como se o sol não existisse e dele emanasse a única energia que fazia a vida prosseguir. Aquele amor surrado, esmagado, mal-tratado nos momentos de ingratidão, naqueles momentos em que se acha ser possível não precisar desse mesmo amor que preenche a alma e que faz querer continuar a vida. O amor sublime, encontrado em um dia qualquer, numa praça ou num ponto de ônibus, mero detalhe, mas, que, a partir do momento do encontro, não se pode mais deixá-lo para trás, porque sequer se pode imaginar que sentido tinha a vida antes daquele encontro. 
                Com o auxílio do estilete arrancou até a última minúscula raiz daquilo. Queimaria tudo e enquanto a fogueira – pequena demais para tanta coisa – ardesse, admiraria o espetáculo, sabia que não poderia perder aquilo, era o começo de um grande momento. A era em que seria feliz, na sua vida planejada, rotineira e burocrática. Olhando a fogueira arder e aproveitando a luz oferecida por ela, suturava o corte, recompunha a pele e contava distraidamente quantos pontos eram necessários para fechar o peito. Do lado de dentro, um buraco vazio ficaria assim até o fim dos tempos, como nunca devia ter deixado de ser. Oco e seco.

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