domingo, 11 de setembro de 2011

Passageiros

         A vida é uma estrada por onde seguimos sem que saibamos realmente onde vai dar. Às vezes longa, às vezes curta. Um caminho que, sem um mínimo de lucidez, é inviável trilhar. Somos todos passageiros nessa aventura insana que é a vida. Há os que descem antes da hora, há os que ficam por pura teimosia ou ousadia. E nessa trajetória, pode-se fazer o melhor ou o pior, não importa, o que não se deve é ficar sem fazer nada, esperando que outros te levem de carona.
        A estrada pode ser asfaltada ou carroçal, mas o que isso importa quando se é um passageiro? Apenas devemos seguir, sequer olhar para trás, pois o que importa é o que vem pela frente.
        Sigamos, juntos ou solitários, passageiros errantes da vida.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Aqui entre nós

            Sabe-se que conversar com os botões é uma prática antiga e usual. Não se sabe se é uma prática mentalmente saudável considerando que os botões não respondem, na verdade não tendo boca nem ouvido como seria possível conversar com eles?
            Verdade seja dita que do jeito que nós, mulheres, conversamos pelos cotovelos e até pelos joelhos, nada mais justo e agradável do que ter nossos próprios botões como interlocutores. Falar, falar e falar sem ninguém para nos dizer que estamos sendo chatas ou repetitivas ou “rodeando demais para chegar ao assunto”. Enfim, o melhor amigo da mulher é o botão. E foi no banheiro do Buffet que começou a amizade, ele lá distraído e ela sozinha, arrependida pelo tanto que tinha comido...
            É... Você fica aí me olhando com essa cara de “socorro, eu não agüento mais segurar a barriga dessa gorda!” Podia pelo menos me dar um conselho: o que você acha? Vomito ou não vomito? Eu não sou tão gorda assim, você está me conhecendo agora, fiz esse vestido só pra essa festa, mas é que eu comi demais, estou ansiosa, sabe?! Eu como a minha ansiedade e dá nisso... Estou pensando em começar a vomitar quando eu comer assim, mas tenho medo de virar anoréxica. Acho horrível gente muito magra, mas também uma gordinha como eu não dá mesmo! Roupa nenhuma fica bem em mim, tudo aperta, marca, fica a banha pulando de lado e para o outro, calça de cintura baixa nem pensar. Só tenho 19 anos, mas me visto feito uma velha, as roupas todas frouxas para não marcar a barriga, saia comprida para não aparecer as celulites. Se bem que mulher magra também tem celulite, né?! Vejo umas na praia, sabe? Fico olhando todo mundo antes de ficar só de maiô. Eu só uso maiô, meu último biquíni vesti quando tinha sete anos. Mas eu olho aquelas meninas bonitinhas desfilando na praia e fico morrendo de vergonha, além de gorda fico branca feito o Gasparzinho. Pareço uma tapioca, branca e redonda.
Mas então, eu vomito ou não? Dói, sabe?! A garganta. Mas é claro que você não sabe, você não tem garganta. Mas a verdade é que dói, dá uma sensação tão ruim, além disso, tem o gosto amargo que fica na boca. Eca, que horrível, deu vontade de vomitar só de lembrar. Mas não tem outro jeito de não continuar balofona, dieta eu não consigo fazer e comer folha? Não sou nem camaleão! Remédio? Nem pensar, tenho medo de ficar dependente, já pensou que mico eu numa clínica de desintoxicação? Que medo! Tem a academia, né? Mas dá uma preguiça, tomar banho para ir, tomar banho depois que chega... Além do mais já reparou que só quem vai pra academia são as gostosas? O que elas estão fazendo lá? Humilhando pessoas como eu. Vê se tem lógica eu pagar pra ser humilhada? As pessoas já fazem isso de graça comigo, melhor gastar dinheiro com outras coisas... Sonho, brigadeiro, quindim, pudim, filé a parmegiana, sanduíche do Mc Donald´s, só coisa gostosa! Percebeu que tudo que é gostoso é super calórico? É, porque nem venha me convencer que alface é uma coisa gostosa porque nem você se convence disso. Rúcula, peixe grelhado, filé de frango na chapa, isso é comida de gente triste, infeliz, desorientada. Aliás, desinformada, não sabe nem onde estão as coisas boas da vida.
            Quer saber, meu amigo, não vou vomitar coisa nenhuma e ainda tem um monte de docinho bonitinho e gostoso lá fora para eu comer. Foi bom conversar com você, espero encontrá-lo mais vezes, foi esclarecedor e animador. Estou me sentindo tão bem, tão leve... Quer dizer, leve nem tanto, afinal eu nem vomitei, graças à você, e estou me sentindo ótima por isso.  Tchau!

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Platonismo

     Eu deveria estar de brincos, por que deixei no carro?
                Também poderia ainda estar de maquiagem, mas naquele dia havia trabalhado o dia inteiro e, no fim da tarde, meu rosto estava um lixo de cansado. Nenhuma maquiagem no mundo daria jeito naquilo.
                Pelo menos os óculos, que dá um ar intelectual, mas tinha feito um risco enorme antes de sair da escola em que trabalhava, e estava mais atrapalhando do que ajudando usá-los naquele momento.
                Evidentemente analisei tudo isso antes de cumprimentar o professor dos tempos da faculdade que também havia sido meu amor platônico eterno. Quando o vi naquela loja de departamento, ao lado de uma criança linda que só poderia ter o seu DNA, calculei tudo isso e o primeiro pensamento foi recuar. Havia passado tanto tempo, talvez ele nem me reconhecesse. Lógico que eu nunca o havia esquecido, mesmo depois de 10 anos...
                Ponderei, medi, calculei e me joguei.
                O que eu poderia perder? Nada. Ficaria triste se ele não tivesse a menor idéia de quem eu era, mas o que era tristeza diante da possibilidade de ver bem pertinho aquele “meu” deus grego da Linguística? Nada.
                Não vou reproduzir o diálogo, é íntimo, afeta diretamente meu “eu-lírico”.
                Mas ganhei primeiro dois beijinhos no rosto, ele lembrou-se de mim, fez uma referência direta a um projeto do qual eu fazia parte na época da faculdade. Lembrou mesmo!
                Conversamos sobre um concurso que estava em andamento, eu havia passado nas duas primeiras fases e ele estaria na banca examinadora da terceira fase, mas não na mesma área a qual concorria. Quem sabe, pelo menos, ele não estaria no mesmo local de prova e eu o veria novamente...
                Depois ganhei mais dois beijinhos de despedida. E mais dois de Natal e de Ano-Novo. Ou seja, ganhei o dia.
                Fui comer ali pertinho sem conseguir pensar em outra coisa que não fosse meu tempo de faculdade. Lembrei-me do meu desempenho brilhante nas duas disciplinas que havia feito com aquele professor, participei ativamente de todas as aulas e tirei nota máxima nas duas. Tinha uma menina chatinha que disputava palmo a palmo o primeiro lugar comigo, não que eu me importasse em ser a primeira da sala, mas queria a atenção dele voltada para mim. Inventava dúvidas onde não havia e adorava quando ele virava me olhando por cima dos óculos e dizia meu nome. Na conversa que tivera com ele, há poucos instantes, percebi que ainda olhava do mesmo jeito.
                Sorri sozinha lembrando-me de muita coisa daquele tempo, mas acabei descobrindo que engraçado mesmo era que aquele tempo nem estava tão longe e eu já tinha feito tanta coisa e era tão diferente daquela adolescente de 16 anos recém ingressa na universidade. E como eu era aflita, angustiada e estressada sem motivos reais. Desastrada, estava no código genético, não havia mudado muito nessa seara.
                Pensando ainda na mulher que era e na que me transformei, lembrei que se nunca tinha passado de um amor platônico de adolescente, agora é que isso não aconteceria mesmo. E isso também era uma conquista, pois não me permitiria um sentimento tão intenso aos meus 16 anos, me percebi mais livre de mim mesma.
                Aquele reencontro foi muito bacana a curto prazo por que alimentou meu ego destruído depois de tentar enfiar Literatura dentro de algumas cabeças duras durante 9 aulas seguidas.  Deu saudade também, um pouco de melancolia, vontade de ter feito um pouco melhor, mas nem sei se era possível e também me perdoei, algo inimaginável na minha adolescência.
                Fiquei feliz e quando entrei no carro gritei como criança, afinal não dava mais para fazer isso na rua como nos tempos de faculdade.
               

Exorcismo

Tomou coragem como quem toma ópio, queria a euforia e a anestesia daquele ato. Heróico para si, insano para muitos... E quem se importava com os muitos?
Vasculhou o ambiente em busca de qualquer objeto cortante, faca ou gilete, fosse o que fosse, mas era necessário e urgente antes que o momento passasse. Não poderia se perdoar depois caso o perdesse.
Arranjou então um estilete, oxidado pelas muitas vezes em que fora usado, mas nunca para aquele fim ao qual seria hoje, agora e sem mais delongas antes que o efeito daquele surto passasse. Arrancou a blusa, botões pularam longe, e rasgou o peito. Tão rápido que se tivesse piscado teria perdido aquela visão. Começou então o processo que imaginava ser o mais dolorido de toda a vida: começou arrancando as utopias inúteis, puxou-as tão violentamente que quase trouxe junto um pulmão. Olhou-as nas mãos ensangüentadas, o que não comoveu. Continuou a esgarçar o peito e agora trazia os castelos de areia, doces construções infantis, o desejo de advogar pelos direitos humanos, a vontade de viajar pela Europa de mochila nas costas e desfilar pela muralha da China. Os sonhos fúteis de coleções toscas, vinhos nunca bebidos, passaportes não carimbados, malas nunca desfeitas, nenhum quarto de hotel bagunçado, o mar do Caribe onde não fez amor ao luar. Em seguida, quando pensava não ter mais fôlego, enfiou a mão no fundo do peito e não achou o que queria. Ainda faltava uma coisa para terminar com tudo aquilo.
Continuou procurando e quando já tinha quase o braço inteiro dentro da ferida latejante, encontrou. Agora sim, estaria terminado. Tinha nas mãos o velho amor da adolescência: saltitante, empolgante, entusiasmado, pelo qual vivera dias tão azuis e noites tão febris. Diante do qual suplicou, ajoelhou e pediu incansavelmente que não se fosse, que continuasse a iluminar sua vida como se o sol não existisse e dele emanasse a única energia que fazia a vida prosseguir. Aquele amor surrado, esmagado, mal-tratado nos momentos de ingratidão, naqueles momentos em que se acha ser possível não precisar desse mesmo amor que preenche a alma e que faz querer continuar a vida. O amor sublime, encontrado em um dia qualquer, numa praça ou num ponto de ônibus, mero detalhe, mas, que, a partir do momento do encontro, não se pode mais deixá-lo para trás, porque sequer se pode imaginar que sentido tinha a vida antes daquele encontro. 
                Com o auxílio do estilete arrancou até a última minúscula raiz daquilo. Queimaria tudo e enquanto a fogueira – pequena demais para tanta coisa – ardesse, admiraria o espetáculo, sabia que não poderia perder aquilo, era o começo de um grande momento. A era em que seria feliz, na sua vida planejada, rotineira e burocrática. Olhando a fogueira arder e aproveitando a luz oferecida por ela, suturava o corte, recompunha a pele e contava distraidamente quantos pontos eram necessários para fechar o peito. Do lado de dentro, um buraco vazio ficaria assim até o fim dos tempos, como nunca devia ter deixado de ser. Oco e seco.