Deitada na cama, Mariana sorria
depois de muito tempo chorando de saudade antes de dormir, pois parece que à
noite era a hora que mais doía tudo.
Ela sorria agora lembrando que
Fernando tinha contado que durante o ensino médio tinha se metido em muitas
brigas, por isso tinha sido tão simples tirar alguém da sua própria cadeira
quando resolveu sentar perto dela. E no final, meio que se desculpando pela
ousadia e pelo temperamento, deu de ombros:
- Aquele carinha nem queria sentar
ali mesmo!
Ela ria sozinha olhando o teto do
quarto naquele sábado à noite, indiferente aos programas que os da idade dela
gostavam de fazer. Tinha sido uma semana menos difícil que as anteriores, logo
no começo da amizade deles, pois agora ela resistia mais ao ímpeto de
expulsá-lo para longe dela. Dava menos respostas atravessadas às perguntas dele
e estava aprendendo que ele era persistente sem ser chato.
Bem longe, ouviu o telefone tocar,
mas não iria atender, estava de pijama, dentes escovados, pronto para “cair nos
braços de Morfeu”, como diria a tia Tereza, irmã da mãe.
- Mari, é para você.
- Diz que eu estou dormindo.
- Bom, até disse, mas esse rapazinho
não engole essas desculpas esfarrapadas não.
Ela podia até adivinhar o sorriso
dele do outro lado da linha.
- Alô. – a voz tentava disfarçar a
ansiedade. Era ele mesmo? Não, não podia, ele não tinha seu número.
- Oi, Mari, queria saber se você
quer ir ao cinema comigo. – a voz dele era inconfundível. Fernando.
- Eu estou dormindo. – ela disse
quase rindo.
- Mesmo? Podia jurar que não. Se
você for sonâmbula vou rir muito da sua cara.
Moço insuportável – ela pensava.
- Bom, já que não quer sair, estou
indo aí levar um filme para assistir com você e com a sua mãe.
- Claro que não, está tarde. E minha mãe não gosta de visita assim, sem
avisar.
- Pois passe para ela que vou
avisar.
Gesticulando para a mãe ser sua
cúmplice e negar o convite, Mariana entregou o telefone. Não podia ouvir o que
ele dizia, mas a mãe toda contente já abria um sorriso enquanto ouvia o que o
rapazinho queria.
- Claro que pode, meu filho, está
tão cedo. – escutou um pouco e continuou. – Não, ela não ia dormir agora não,
ela estava estudando, já disse até para ela não estudar tanto. É bom que ela se
distraia. – mais um instante escutando a voz do outro lado da linha. – Qualquer
um que você trouxer, meu filho, pode vir.
Mariana de boca aberta e cara fechada,
mal podia conter a raiva... Raiva mesmo? Ou ela estava se divertindo com aquele
moço insuportavelmente inconveniente e ... Procuraria outro adjetivo que lhe
coubesse. Bom, ela ia ter o tempo de um filme para encontrar.
Alguns minutos depois, ele chegou trazendo
filme e pizza. Muito educado, apresentou-se à mãe e esta, toda solícita e
simpática, recebeu o moço como se já o conhecesse há muito tempo. Mais conversaram
do que realmente prestaram atenção ao que passava na tela à frente deles,
ficaram sabendo muito da história uns dos outros.
Fernando
era o irmão mais velho e a irmã estudava na mesma escola. Praticava judô desde
os cinco anos por recomendação do pediatra “para controlar a personalidade impulsiva”,
mas ele não concordava, achava-se muito tranquilo, mas continuava indo à
academia para satisfazer a mãe. Estava repetindo o ano escolar porque as notas não
eram muito boas, além de ter tido catapora no período de recuperação, o que o
desestimulou mais ainda com os estudos, mas tinha sido interessante, porque
agora ficava na mesma sala que Mariana. Falava abertamente sobre isso, sem
esconder sua satisfação, mas sem expor a moça que estava tossindo, engasgada
com refrigerante.
Dona
Socorro contava que sentia muita saudade do marido que passava a maior parte do
tempo fora de casa, pois trabalhava em uma plataforma de petróleo. Investia esse
tempo fazendo alguns cursos de artesanato, culinária e pintura. Mariana era seu
maior orgulho, era uma excelente aluna e já tinha decidido que faculdade faria:
Engenharia Civil.
Mariana
não falava muito, apenas se manifestava quando a mãe ia se aprofundar demais em
assuntos muito íntimos relacionados ao ano anterior, coisas que ela preferia não
mencionar na frente de Fernando, mesmo achando que ele sabia de muitas daquelas
cicatrizes. Mais ouviu que falou, afinal aquele rapazinho gostava tanto de
conversar, abria assim tão fácil sua vida que ela estava encantada, pois não
tinha essa capacidade. A conversa também serviu para que ela entendesse o episódio
da mudança de lugar na sala, Fernando não era muito de argumentar quando queria
algo e, se ele ia mudar de lugar, nada o impediria de tomar a cadeira de quem
fosse, afinal quem o desafiaria? Ela imaginou quantas vezes o rapaz já teria
visitado a sala da coordenadora, mas preferiu não perguntar. A estratégia do
judô não tinha contribuído muito para apaziguar a ferocidade do rapaz, mas,
analisando o outro lado, ele parecia doce enquanto conversava com sua mãe,
tímido quando admitiu não saber dançar e compreensivo quando, pacientemente, propôs
esperar o tempo dela.
Eram
quase 23h00 quando a mãe dele veio buscá-lo e dona Socorro se despediu prometendo
convidá-lo para almoçar com elas num sábado. Mariana não parecia muito
interessada, estava tão pensativa diante de tanta coisa que ouviu do rapaz que não
dimensionou o convite.
A
mãe parecia nas nuvens: que rapaz educado, Mariana! Que rapaz isso, que rapaz
aquilo! Que menino bonzinho! Ok, ela não iria contar agora como o menino
bonzinho assustava os colegas de sala, deixaria a mãe com a impressão boa que
ele tinha causado.
Enquanto não voltava aos braços de
Morfeu, a moça tentava analisar as entrelinhas do discurso do rapaz. Mas seria
que tinha entrelinhas? Será que ele não era mesmo tão simples como demonstrava
ser? Será que...? Mariana dormiu e talvez até sonhou com o rapaz, mas não é de
bom tom invadir os sonhos de mocinhas tão sérias como ela.
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Fiquei ansioso, olhando horas e
horas para o papelzinho que minha irmã me entregou com o telefone da Mariana. Mas,
no final, nem precisava de tanto drama: deu tudo certo, a mãe dela me ama,
agora falta conquistar a filha.
Preciso controlar essa minha
personalidade difícil e essa minha ansiedade. Droga! Ela não precisa conhecer
meu lado rebelde todo de uma vez. É claro que não vou mentir, mas também não preciso
assustá-la, nesse instante é tudo de que não preciso. Como da outra vez não! Droga!
Por que, às vezes, eu não sei conversar? Por que não consigo colocar em prática
o que andava treinando? Sou tranquilo, mas meus limites são muito estreitos em
algumas situações...
Finalmente, depois que crio coragem
para ligar e jogo maior charme para cima da mãe dela, a menina resolve dizer que
está dormindo! Mas não eu ia recuar nem um centímetro da minha decisão: posso
ser tímido, mas uma vez que decido algo, ninguém me segura. Acho que é nesses
momentos que, quando desafiado, sou irracional. Na escola não posso mais, se eu
aparecer na sala da coordenadora, ela disse que será a última vez. Na penúltima,
o menino na cadeira ao meu lado estava de nariz quebrado! Droga! Mas quem mandou ele mexer com minha
irmã? Nem ligo! Bom, não ligava, agora preciso terminar o ensino médio e sair
dali antes que minhas chances esgotem: as que ainda tenho com Mariana e com a
coordenação.
Mariana estava muito linda e, com aquele
ar de quem realmente ia dormir, parecia menos hostil. Droga de menina difícil! Mas
todas as vezes que ela quis me rejeitar, parecia mais desafiador como numa luta
de judô em que se usa a força do adversário contra ele mesmo. Ah, Mariana,
serei seu desafio e você não escapa! Passei o ano inteiro lutando contra minha
timidez, mas agora, na mesma sala que você, usufruindo de pequenas
oportunidades, vou fazer você me querer como aquele carinha sem sal não soube
fazer. Ainda bem que ele sumiu! Perdi a primeira luta, mas agora o campeonato é
meu!
A mãe dela é bacana, parece aliada e
basta me comportar como a mamãe me ensinou que serei a visita mais constante e agradável
daquela casa. Ela conversa bastante, vou descobrir tantas coisas sobre a Mari
que ela nem imagina. Não sou um menininho idiota, sou um homem decidido e terei
que quero. Mas vou dar um tempo para ela, sei como deve ter sido ruim durante o
ano passado quando a amiga dela morreu. Eu ia para a mesma festa e no mesmo
carro, mas, na última hora desisti, teria dança demais para meu pequeno
repertório. Credo! A notícia do acidente desabou em cima de todo mundo da
escola, mas acho que a Mari foi a mais sentiu, afinal era a melhor amiga dela. Já
senti coisa parecida, mas não quero pensar nisso agora. Quero dormir com o
cheiro da Mari na minha memória, com o sorriso dela cravado no meio do meu cérebro,
decorar os gestos tímidos e mal disfarçados para quando ela quiser fingir que não
me quer por perto. Ah, Mariana, sei exatamente que essa sua mania de rejeitar
as pessoas é medo de que tudo se repita, já senti isso, apenas reagi diferente
de você.
Droga! Amanhã tenho que acordar
cedo, mas ainda estou aqui pensando que não dei um beijo nela. Pensando que não
sei quanto tempo vou ter que esperar por ela, mas prometi e vou cumprir. Preciso
dormir, preciso dormir! Tenho luta amanhã, mais um domingo de campeonato e vou
ganhar, sempre ganho! Quando vou ganhar a Mariana? Droga! Por que eu disse que
ela ia ter que pedir para me beijar? Sou muito autoconfiante! Isso nem sempre
me ajuda! Amanhã penso no que vou fazer com essa menina!