sábado, 29 de dezembro de 2012

1996 (com Fernando) - parte II


            Deitada na cama, Mariana sorria depois de muito tempo chorando de saudade antes de dormir, pois parece que à noite era a hora que mais doía tudo.
            Ela sorria agora lembrando que Fernando tinha contado que durante o ensino médio tinha se metido em muitas brigas, por isso tinha sido tão simples tirar alguém da sua própria cadeira quando resolveu sentar perto dela. E no final, meio que se desculpando pela ousadia e pelo temperamento, deu de ombros:
            - Aquele carinha nem queria sentar ali mesmo!
            Ela ria sozinha olhando o teto do quarto naquele sábado à noite, indiferente aos programas que os da idade dela gostavam de fazer. Tinha sido uma semana menos difícil que as anteriores, logo no começo da amizade deles, pois agora ela resistia mais ao ímpeto de expulsá-lo para longe dela. Dava menos respostas atravessadas às perguntas dele e estava aprendendo que ele era persistente sem ser chato.
            Bem longe, ouviu o telefone tocar, mas não iria atender, estava de pijama, dentes escovados, pronto para “cair nos braços de Morfeu”, como diria a tia Tereza, irmã da mãe.
            - Mari, é para você.
            - Diz que eu estou dormindo.
            - Bom, até disse, mas esse rapazinho não engole essas desculpas esfarrapadas não.
            Ela podia até adivinhar o sorriso dele do outro lado da linha.
            - Alô. – a voz tentava disfarçar a ansiedade. Era ele mesmo? Não, não podia, ele não tinha seu número.
            - Oi, Mari, queria saber se você quer ir ao cinema comigo. – a voz dele era inconfundível. Fernando.
            - Eu estou dormindo. – ela disse quase rindo.
            - Mesmo? Podia jurar que não. Se você for sonâmbula vou rir muito da sua cara.
            Moço insuportável – ela pensava.
            - Bom, já que não quer sair, estou indo aí levar um filme para assistir com você e com a sua mãe.
            - Claro que não, está tarde.  E minha mãe não gosta de visita assim, sem avisar.
            - Pois passe para ela que vou avisar.
            Gesticulando para a mãe ser sua cúmplice e negar o convite, Mariana entregou o telefone. Não podia ouvir o que ele dizia, mas a mãe toda contente já abria um sorriso enquanto ouvia o que o rapazinho queria.
            - Claro que pode, meu filho, está tão cedo. – escutou um pouco e continuou. – Não, ela não ia dormir agora não, ela estava estudando, já disse até para ela não estudar tanto. É bom que ela se distraia. – mais um instante escutando a voz do outro lado da linha. – Qualquer um que você trouxer, meu filho, pode vir.
            Mariana de boca aberta e cara fechada, mal podia conter a raiva... Raiva mesmo? Ou ela estava se divertindo com aquele moço insuportavelmente inconveniente e ... Procuraria outro adjetivo que lhe coubesse. Bom, ela ia ter o tempo de um filme para encontrar.
            Alguns minutos depois, ele chegou trazendo filme e pizza. Muito educado, apresentou-se à mãe e esta, toda solícita e simpática, recebeu o moço como se já o conhecesse há muito tempo. Mais conversaram do que realmente prestaram atenção ao que passava na tela à frente deles, ficaram sabendo muito da história uns dos outros.
Fernando era o irmão mais velho e a irmã estudava na mesma escola. Praticava judô desde os cinco anos por recomendação do pediatra “para controlar a personalidade impulsiva”, mas ele não concordava, achava-se muito tranquilo, mas continuava indo à academia para satisfazer a mãe. Estava repetindo o ano escolar porque as notas não eram muito boas, além de ter tido catapora no período de recuperação, o que o desestimulou mais ainda com os estudos, mas tinha sido interessante, porque agora ficava na mesma sala que Mariana. Falava abertamente sobre isso, sem esconder sua satisfação, mas sem expor a moça que estava tossindo, engasgada com refrigerante.
Dona Socorro contava que sentia muita saudade do marido que passava a maior parte do tempo fora de casa, pois trabalhava em uma plataforma de petróleo. Investia esse tempo fazendo alguns cursos de artesanato, culinária e pintura. Mariana era seu maior orgulho, era uma excelente aluna e já tinha decidido que faculdade faria: Engenharia Civil.
Mariana não falava muito, apenas se manifestava quando a mãe ia se aprofundar demais em assuntos muito íntimos relacionados ao ano anterior, coisas que ela preferia não mencionar na frente de Fernando, mesmo achando que ele sabia de muitas daquelas cicatrizes. Mais ouviu que falou, afinal aquele rapazinho gostava tanto de conversar, abria assim tão fácil sua vida que ela estava encantada, pois não tinha essa capacidade. A conversa também serviu para que ela entendesse o episódio da mudança de lugar na sala, Fernando não era muito de argumentar quando queria algo e, se ele ia mudar de lugar, nada o impediria de tomar a cadeira de quem fosse, afinal quem o desafiaria? Ela imaginou quantas vezes o rapaz já teria visitado a sala da coordenadora, mas preferiu não perguntar. A estratégia do judô não tinha contribuído muito para apaziguar a ferocidade do rapaz, mas, analisando o outro lado, ele parecia doce enquanto conversava com sua mãe, tímido quando admitiu não saber dançar e compreensivo quando, pacientemente, propôs esperar o tempo dela.
Eram quase 23h00 quando a mãe dele veio buscá-lo e dona Socorro se despediu prometendo convidá-lo para almoçar com elas num sábado. Mariana não parecia muito interessada, estava tão pensativa diante de tanta coisa que ouviu do rapaz que não dimensionou o convite.
A mãe parecia nas nuvens: que rapaz educado, Mariana! Que rapaz isso, que rapaz aquilo! Que menino bonzinho! Ok, ela não iria contar agora como o menino bonzinho assustava os colegas de sala, deixaria a mãe com a impressão boa que ele tinha causado.
            Enquanto não voltava aos braços de Morfeu, a moça tentava analisar as entrelinhas do discurso do rapaz. Mas seria que tinha entrelinhas? Será que ele não era mesmo tão simples como demonstrava ser? Será que...? Mariana dormiu e talvez até sonhou com o rapaz, mas não é de bom tom invadir os sonhos de mocinhas tão sérias como ela.
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            Fiquei ansioso, olhando horas e horas para o papelzinho que minha irmã me entregou com o telefone da Mariana. Mas, no final, nem precisava de tanto drama: deu tudo certo, a mãe dela me ama, agora falta conquistar a filha.
            Preciso controlar essa minha personalidade difícil e essa minha ansiedade. Droga! Ela não precisa conhecer meu lado rebelde todo de uma vez. É claro que não vou mentir, mas também não preciso assustá-la, nesse instante é tudo de que não preciso. Como da outra vez não! Droga! Por que, às vezes, eu não sei conversar? Por que não consigo colocar em prática o que andava treinando? Sou tranquilo, mas meus limites são muito estreitos em algumas situações...
            Finalmente, depois que crio coragem para ligar e jogo maior charme para cima da mãe dela, a menina resolve dizer que está dormindo! Mas não eu ia recuar nem um centímetro da minha decisão: posso ser tímido, mas uma vez que decido algo, ninguém me segura. Acho que é nesses momentos que, quando desafiado, sou irracional. Na escola não posso mais, se eu aparecer na sala da coordenadora, ela disse que será a última vez. Na penúltima, o menino na cadeira ao meu lado estava de nariz quebrado!  Droga! Mas quem mandou ele mexer com minha irmã? Nem ligo! Bom, não ligava, agora preciso terminar o ensino médio e sair dali antes que minhas chances esgotem: as que ainda tenho com Mariana e com a coordenação.
            Mariana estava muito linda e, com aquele ar de quem realmente ia dormir, parecia menos hostil. Droga de menina difícil! Mas todas as vezes que ela quis me rejeitar, parecia mais desafiador como numa luta de judô em que se usa a força do adversário contra ele mesmo. Ah, Mariana, serei seu desafio e você não escapa! Passei o ano inteiro lutando contra minha timidez, mas agora, na mesma sala que você, usufruindo de pequenas oportunidades, vou fazer você me querer como aquele carinha sem sal não soube fazer. Ainda bem que ele sumiu! Perdi a primeira luta, mas agora o campeonato é meu!
            A mãe dela é bacana, parece aliada e basta me comportar como a mamãe me ensinou que serei a visita mais constante e agradável daquela casa. Ela conversa bastante, vou descobrir tantas coisas sobre a Mari que ela nem imagina. Não sou um menininho idiota, sou um homem decidido e terei que quero. Mas vou dar um tempo para ela, sei como deve ter sido ruim durante o ano passado quando a amiga dela morreu. Eu ia para a mesma festa e no mesmo carro, mas, na última hora desisti, teria dança demais para meu pequeno repertório. Credo! A notícia do acidente desabou em cima de todo mundo da escola, mas acho que a Mari foi a mais sentiu, afinal era a melhor amiga dela. Já senti coisa parecida, mas não quero pensar nisso agora. Quero dormir com o cheiro da Mari na minha memória, com o sorriso dela cravado no meio do meu cérebro, decorar os gestos tímidos e mal disfarçados para quando ela quiser fingir que não me quer por perto. Ah, Mariana, sei exatamente que essa sua mania de rejeitar as pessoas é medo de que tudo se repita, já senti isso, apenas reagi diferente de você.
            Droga! Amanhã tenho que acordar cedo, mas ainda estou aqui pensando que não dei um beijo nela. Pensando que não sei quanto tempo vou ter que esperar por ela, mas prometi e vou cumprir. Preciso dormir, preciso dormir! Tenho luta amanhã, mais um domingo de campeonato e vou ganhar, sempre ganho! Quando vou ganhar a Mariana? Droga! Por que eu disse que ela ia ter que pedir para me beijar? Sou muito autoconfiante! Isso nem sempre me ajuda! Amanhã penso no que vou fazer com essa menina!

sábado, 22 de dezembro de 2012

1996 (com Fernando)


            Mariana acordou na manhã seguinte com muita dor de cabeça. A festa tinha durado até às duas da manhã e ela nem sabia direito de onde tinha tirado tanta força para dançar naquela sandália de salto enorme. Bem, se ela soubesse que ia dançar, tinha usado algo mais confortável, mas tinha sido obrigada pelas circunstâncias.
            O rapazinho, Fernando, não tinha dado opção, pois a perseguiu durante os “parabéns para você” e demonstrou que não ficaria sozinho o resto da noite: ou ela ficava lá e conversava com ele – sendo intimidada por ele, talvez essa fosse a melhor forma de definir – ou ia para pista de dança, que ela descobriu muito rápido não ser a praia dele, quando a prima dela veio convidá-lo para dançar. Elegantemente, ele recuou diante do convite:
            - Não posso, não sei dançar, sou muito desastrado.
            Foi o momento perfeito, ela se livraria daquela conversa inconveniente naquele momento e foi quase pulando com a prima para a pista. Ufa!
            Aproveitaria o momento da dança para tentar processar o ocorrido, mas a música era alta demais e agitada na mesma proporção. Na volta para casa, a mãe bombardeou: quem era o rapaz, já se conheciam, como ele era lindo, parecia muito educado, blá blá blá... e veio a dor de cabeça. Como a mãe podia pensar que aquele moleque inconveniente era educado?
            Ainda bem que era véspera de feriado prolongado e não teria que ver o moço – para não chamar de outra coisa – na escola. Coitada da Mariana! Não tinha nem para quem contar, uma melhor amiga, talvez, mas Carolainne... Carolainne já não estava mais aqui, do lado dela para compartilhar a inquietação no peito; para ouvir a descrição do rosto do rapaz, quase perfeito pela ausência de espinhas típicas da idade dos adolescentes; para comparar o cabelo sem gel, diferente do que todos os rapazes estavam usando, com algum ator norte-americano; a amiga, com certeza, saberia que perfume era aquele que ele estava usando, meio amadeirado meio cítrico; e as lágrimas escorreram pelo rosto de Mariana como um açude que sangra.
            No meio das lágrimas, surgiu o rosto de Daniel, tão frágil e tão distante; viu os olhos dele tão meigos, tão dóceis, tão pacientes, totalmente diferentes dos olhos agressivos e indiscretos de Fernando; quase ouviu a voz de Daniel dizendo seu nome, mas era a de Fernando que estava mais próxima e recente. E quando percebeu que era absurdo demais o que estava fazendo, quase comparando os dois como se fosse um leilão, resolveu tomar o remédio que mãe entrou no quarto oferecendo e dormiu. Dona Socorro sabia que aquela não era a hora de encostar a filha na parede e arrancar dela o que estava sentindo, o que a fazia chorar. Era apenas hora de dormir.
            Mariana passou o resto do feriado calada, saía do quarto para ajudar a mãe com algum afazer doméstico ou comer – saco vazio não para em pé, filha! – mas depois voltava para o quarto e ia estudar. Ela tinha uma meta, não passaria no colégio tempo mais do que o necessário e estabelecido pela escola, nada de recuperação! Sairia dali o mais rápido possível, principalmente agora que teria que dividir o mesmo espaço com aquele... Aquele... Bom, ele mesmo!
            Na segunda-feira, não sabia direito o que estava fazendo, mas não queria mais fazer o mesmo caminho que tinha feito com Daniel no ano anterior, aquilo a deixava deprimida demais. Não que ela quisesse gargalhar, mas pararia de regar a semente da depressão no seu coração, por outro lado não iria podá-la, deixaria lá, quieta.
            Ao entrar na sala de aula, ao invés de fazer o que sempre fazia e entrar de cabeça baixa sentando na terceira cadeira da fila da parede, instintivamente olhou para o lado oposto da sala e deu de cara com ele sorrindo. Mas não para ela, talvez ele nem tivesse visto que ela tinha chegado, ele sorria para uma menina sentada na fila ao lado dele. Conversava tão animado que ela pode olhar para ele alguns instantes antes que a menina se desse conta e olhasse para Mariana, que, envergonhadíssima, desviou o olhar e sentou.
            Ficou inquieta durante todas as aulas antes do intervalo. Ao responder a chamada, tentou pensar que cara fazia, ele tinha comentado sobre isso. Como assim? Que cara era essa? Droga!
            Ao toque do intervalo, quase todos os alunos saíam da sala, mas ela sempre ficava. E ele veio sentar na cadeira à frente da que ela estava, meio de lado, meio de frente, meio dando atenção a ela, meio se preparando para ir embora, ela não sabia direito o que ele queria. Mas era hora de encenar a moça forte dos filmes de faroeste.
            - Oi, Mariana, como foi seu final de semana? – ele falava tão tranquilo e ela ali, se remoendo por dentro, para poder dar um sorriso falsamente despreocupado.
            - Oi. – respondeu friamente de meio sorriso no rosto, foi o máximo que conseguiu.
            - Como foi seu feriado? – ele queria uma conversa normal de amigos? Ela não podia acreditar.
            - Não é da sua conta. – disse sem sorriso mesmo.
            - Nossa, tão bonita e tão mal criada! Sua mãe sabe que você não coloca em prática as aulas de etiqueta que ela te dá? – e Mariana olhava de perto a graça do sorriso dele, tão perto, perto demais. Poderiam até ser amigos se tivessem se conhecido em outro momento, mas agora não, ela não queria correr o risco de perder mais ninguém.
            - Não é da sua conta, entendeu? Você não deveria estar aqui, você podia estar conversando com os seus amigos ou amigas, sei lá. Podia me deixar em paz como eu sempre fiquei, na minha.
            - Em paz... Sei, entendo seu ponto de vista, mas acho que não. Eu não tenho nada melhor para fazer e, além disso, não acho que você anda muito em paz. Seu nariz está avermelhado e inchado, podia apostar que você passou o feriado chorando e que eu fui o único momento divertido nesse tempo.
            Mariana pensou enquanto preparava a próxima resposta para deixá-lo sem graça e enxotá-lo dali, mas não conseguia articular nada que fizesse sentido. Racionalizando, era verdade, ele estava esfregando a verdade na cara dela. Passou mesmo o feriado chorando escondido no quarto enquanto tentava estudar e lembrava amargamente da amiga e do grande amor. Os poucos sorrisos que deu foram lembrando o jeito que ele tinha chegado à mesa para falar com ela, da força com que tinha segurado a mão dela e da forma tímida com que ele disse que não sabia dançar. Refletiu, ponderou, resolveu não responder.
            - Mari – vou te chamar assim – eu não vou te fazer nada de ruim. Para de olhar para mim como se eu fosse uma ameaça. Só quero ficar por perto, te ajudar quando precisar, te dar um ombro para chorar, não é legal chorar sozinho, disso tenho certeza. Acho você linda e quase te beijei na festa, mas prometo que não faço, não até eu saber que você também quer. Ia te roubar um beijo, mas foi melhor mesmo que você saísse correndo, às vezes sou muito impulsivo e me arrependo depois, podia ter sido minha última chance naquela noite, ainda bem que foi diferente. Eu posso?
            Ahn? Mariana não entendia aquele rapaz, ele era difícil de ler, diferente das outras frágeis pessoas que tinham tentando se aproveitar da dor dela. E agora ele estava fazendo uma proposta irresistível e tinha falado alguma coisa sobre beijo, mas ela não sabia direito o que tinha sido, era informação demais. O que era mesmo que ele estava pedindo autorização a ela?
            - Posso ficar por perto sem correr o risco de você querer me chutar como faz com todo mundo? Bom, posso até deixar você me chutar, mas saiba que vou revidar.
            - Tanto faz. – ela não sabia direito porque tinha respondido assim, mas devia ser curiosidade, ele era atrevido, parecia saber exatamente o que queria. E ela não estava acostumada a lidar com pessoas assim, a não ser a mãe, mas com ela não tinha jeito, era fazer e pronto.
            - Bem, acho que posso conviver com isso, por enquanto, é melhor que um “não”, mas vou exigir mais de você, além desse seu mau humor. Ele te deixa feia e você não é.
            Literalmente, Fernando deixava Mariana sem respostas.
            Decidido, ele atravessou a sala e pegou o caderno deixado na cadeira do lado oposto da sala. Agora ele sentaria ali, do lado dela da sala, na cadeira de trás.
            - Já tem alguém sentando aí. – ela ainda tentava escapar da proposta.
            - Tinha. – e ele pegou a mochila que estava na cadeira que ele queria sentar e colocou em outra, ao lado, e que já estava ocupada. Como aquilo ia se resolver quando desse o sinal encerrando o intervalo?
            De uma maneira bem discreta a coisa foi arranjada, Mariana não entendeu direito porque, mas quando os alunos voltaram para a sala de aula ao final do intervalo, simplesmente o garoto que ela julgava estar ocupando a cadeira que Fernando sentava agora, pegou a mochila e sentou em outra cadeira vazia. Enquanto isso, Fernando assobiava tranquilamente uma canção de uma banda que ele adorava: Engenheiros do Hawaii. Como ele podia ser tão tranquilo? Mariana se pegou querendo saber coisas demais sobre ele.
            O resto das aulas daquela manhã foram assim: o professor falava alguma coisa engraçada, Fernando dava uma gargalhada; algum aluno fazia um comentário desnecessário, ele retrucava baixinho só para Mariana ouvir, e ela queria rir e não rir ao mesmo tempo; passou bilhetinhos por baixo do braço dela com letras de música; respondia baixinho quando o professor fazia alguma pergunta, mas não demonstrava querer participar da aula; era inquieto e deixava Mariana desconfortável, afinal ela tinha passado muito tempo tentando aquietar o próprio coração, mesmo sem êxito algum.
            Ao final das aulas ela tinha um monte de anotação no caderno e ele, nenhuma. 

1996 (parte III)


            Agora, nesse novo ano escolar, me sentia deslocada no meio daquele monte de
gente conhecida e estranha. Não queria amigos nem amores, tinha gradativamente me
afastado do Daniel, as cartas rareavam, minhas e dele. Talvez inconscientemente eu não quisesse prolongar o inevitável, pois amores à distância na adolescência não podem dar certo... ou podem? Resolvi que não pagaria para ver. Queria sobreviver ao último ano na escola sem marcas e sem dores, queria apenas o vazio no peito que Carolainne e Daniel deixaram que chegava a quase ser doce de tão intenso.
            Frequentava assiduamente as aulas, caminhava dolorosamente pelas mesmas
ruas do bairro, e levava a vida morna que havia escolhido levar. Não queria amigos nem inimigos, era fria, não dava a mínima para o que quer que acontecesse na sala de aula
ou na escola. Eu não me julgava brilhante mas mantinha as notas altas para me livrar o mais cedo possível da rotina escolar, aquele ambiente me trazia muitas lembranças e
elas nem sempre eram saudáveis.
            No meio dessa suposta calmaria, minha tia resolveu que comemoraria o
aniversário dela. Achei meio infantil da parte dela e comentei apenas com minha mãe já decidindo não ir, aleguei que seria péssima companhia e enchi a cabeça dela com
inúmeros argumentos. Mas, no final, não teve jeito, dona Socorro quando queria não
ouvia nada do que lhe diziam, apenas impunha:
            - Ok, filha, você vai sim. Já chega de luto, de cara inchada de tanto chorar, de
música deprê do rádio. E, no fim das contas, é apenas uma festa. Você vai.
            E bateu o martelo. Sofri até o dia da festa. Debatiam-se dentro de mim inúmeras ideias desde traição ao luto pela Carolainne até traição ao amor por Daniel. Apenas
sabia que a dona Socorro, minha mãezinha, não se daria por vencida e eu iria.
            Coloquei um vestido preto (sim, iria, mas manifestaria indignação!) e fomos. No meio da festa, todo mundo dançando, comendo, bebendo, dando risada, algumas primas que não via a algum tempo que insistiam que eu fosse me divertir, alguns olhares
vazios que enviei como resposta e, subitamente, alguém senta na minha mesa vazia.
            - Oi!
            Nem olhei.
            - Oi! – pensei que devia ser um desses primos chatinhos que acham que, porque me viram andando de calcinha quando tinha 5 anos, são íntimos.
            - Você estuda na minha sala.
            Anh?
            - Ok. – então, meu bem, você deve saber que não gosto de conversa, pensei mas não disse, apenas virei em sua direção e lancei meu olhar vazio.
            - Pensei que você era mal-humorada só na escola. – disse ele disfarçando muito um ar de riso.
            - E quem você pensa que é para julgar meu humor? – ah, era uma maneira muito própria de me divertir e eu sabia fazer aquilo com maestria: afrontar, fazer recuar e rir
da cara de espanto de quem quer que fosse. Se ele queria...
            - Ah, foi bom você perguntar. Faz tempo que quero dizer para você quem eu
sou, mas você não dá nenhuma chance, nem sei como aquele carinha conseguiu.
            Carinha? Sério? Ele acha que vai falar assim do Daniel? Naquele momento tinha que escolher a melhor estratégia “espanta-chato”: o silêncio mortal ou a habilidade
linguística. Resolvi pela primeira opção.
            - Ok – ele continuou olhando profundamente nos meus olhos – eu sabia que
você ia fazer isso. Ou isso ou me humilhar com essa sua língua ferina, mas hoje, quando vi você entrar por aquela porta, decidi que era meu dia de sorte e eu não ia desperdiçar. Bom, meu nome é Fernando, eu sento do lado oposto ao seu na sala. Aliás, de lá dá para ver perfeitamente todas as suas reações enigmáticas ao que se passa na sala. Sento na
mesma cadeira desde o ano passado, mal pude acreditar quando tive catapora no período das provas finais e acabei perdendo o ano. Era a Providência: eu repetiria de ano na sua sala!
            Nesse momento eu não sabia gritava para minha mãe para ela ligar para a polícia ou se esperava mais revelações do meu novo amigo doente mental sentado ao meu
lado.
            - Você estuda na mesma sala que eu? – repeti sabendo a resposta, mas queria
entender a informação. Que diabos ele está fazendo aqui?
            - Isso mesmo, sou amigo da sua prima. – e apontou para a menina de vestido
prateado no meio da pista.
            Sim e daí? Detesto esse abismo infinito nas conversas, parece que ninguém tem mais nada a dizer e fim, todo mundo levanta e vai embora. Mas ele não parecia disposto ao fim.
            - Sabia que quando a gente se apresenta a outra pessoa costuma responder
dizendo seu nome e ambas apertam as mãos? – ele estava rindo enquanto falava e
observei as covinhas no seu rosto. Gente, isso é coisa de criança! Bebês têm covinhas na bochecha enquanto sorriem, não esses doentes mentais que atrapalham sua noite de
fossa no aniversário da tia.
            - Você não estuda na minha sala? Então, pelo menos três vezes por dia, nas
trocas de professor, você ouve quando eles dizem meu nome.
            - Ok, Mariana, eu sei seu nome e olho para você todas as vezes que o professor
faz a chamada. É engraçado! Você faz quase uma careta! Gostaria de saber porque.
            - Não gosto que olhem para mim.
            Aí ele não riu, ele gargalhou! Como assim? Ele jogou a cabeça para trás e seu
cabelo espetado sacudia no ar com o balanço do corpo, ao mesmo tempo em que
segurava a barriga.
            - Você parece minha irmãzinha. Ela também faz birra quando não gosta de
alguma coisa.
            Definitivamente, ele era louco! Eu, fazendo birra! Ok, hora do nocaute e do
“hasta la vista, baby”, já dei chance demais para esse moço.
            - Bom – eu disse enquanto levantava e pegava minha bolsa em cima da mesa–
não foi um prazer saber da sua existência, boa noite e até nunca mais!
            Inesperadamente, ele segurou minha mão contra a mesa, com força demais
quase esmagando meus dedos.
            - Não, senhora, você não vai agora. Levei muito tempo esperando e respeitando seu tempo de luto e enfado com o mundo. Senta aí, deixa de ser boba, vamos conversar! Ou você vai dançar ao som da Jovem Guarda que está na pista? Sua mãe não parece
querer ir embora agora. Olha como ela está se divertindo! E você não vai estragar a
noite dela, né? Além disso, você fica linda fazendo bico, não me prive dessa visão.
            Fiquei atordoada, após meses e meses alimentando meu equilíbrio, buscando sobreviver na selva dos meus sentimentos, e vem esse moço, para não dizer outra coisa, e
me tira do sério desse jeito em poucos minutos? No ritmo em que processava as
informações na minha mente, ia sentando.
            - Já pode deixar o sangue circular na minha mão! – falei alto demais.
            - Oh, desculpa, perdi a noção da força. Mas a culpa é sua querendo sair correndo assim de mim, nem fiz nada ainda. – havia um tom de graça e ameaça mal disfarçada
na voz dele.
            Queria analisar o discurso dele, saber o que havia por trás daquele interesse
súbito na minha “birra”. Eu não faço birra! Não sou mais criança! Mas eu não sabia o
que dizer, de repente as palavras tinham sumido, traiçoeiras! Fiquei então perdida
avaliando o rosto bronzeado, surfista talvez, o cabelo espetado e sem o gel que a
maioria dos meninos da nossa idade estavam usando, mas eu devo ter sido detalhista
demais na minha avaliação, pois ele percebeu:
            - Algo errado? – e passou a mão no rosto. Coitado, em duas palavras me deu
cartas para jogar, não deveria ter demonstrado insegurança, baby, eu posso ser cruel, é o que sei fazer de melhor, pois o mundo me ensinou como é não ter piedade. E estou
apenas começando.
            - Tem sim. – ok, ele vai morrer na dúvida, ficar calado o resto da noite ou sair
correndo no meio de uma desculpa esfarrapada, assim espero.
            Mas ele não era tão facilmente manipulável como os que já tinham tentado se
aproximar e tinham sido rechaçados. Ele era impossível!
            E então, ele aproximou demais o rosto do meu, fechou os olhos e disse:
            - Tira!
            Anh? Ele não está jogando meu jogo, ele sequer está se dando conta que estou
jogando com ele, aliás, que quero jogá-lo para bem longe de mim, se possível em outra galáxia. Insuportável!
            Mas agora, perto demais, pude perceber que ele não tinha uma marca sequer de
espinhas, que seu perfume era muito bom e que seus cílios tinham uma cor entre
castanho claro e cobre. Ah, que raiva! No próximo segundo eu tinha levantado rápido
demais para que ele me segurasse e ele ficou lá sentando, plantado feito uma batata no
asfalto em pleno meio-dia... Estou fazendo comparações estranhas! Saí à procura da
minha mãe pronta para implorar para irmos embora, ia inventar cólicas, dores na cabeça ou até mesmo um ataque de epilepsia, se fosse preciso, pois aquele moço estava me
incomodando e perto demais da minha muralha da China tão bem construída.
            Foi quando ouvi no microfone do DJ:
            - Queridos, é hora dos parabéns!
            Sério? Sério mesmo?

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

1996 (parte II)


Estava assustada com a notícia, mas como ainda demoraria até o fim do ano escolar para o Daniel ir embora, então resolvemos aproveitar cada segundo juntos. A mãe dele gentilmente ligou para a minha para que eu fosse passar as tardes na casa deles até eles providenciarem a mudança. Passei a ir direto da escola para a casa do Daniel, e percebi que não tinha nada a ver com o caminho da minha, e ele apenas sorriu quando toquei no assunto.
            A mãe dele era uma simpatia só e, após almoçarmos e fazermos as tarefas, íamos nos divertir. Jogávamos War e de dois não teria a menos graça, mas estávamos apaixonados e bastava o sorriso de dentes brancos e quase perfeitos do Daniel para que o War fosse a 8ª maravilha. Experimentamos dominó, xadrez e inúmeras modalidades de jogos de tabuleiros que ficaram comigo quando eles foram embora.
            Ríamos muito naquelas tardes quentíssimas que foram as dos últimos meses de 1995, conversamos, fizemos mil planos que envolviam desde sequestros a fugas milaborantes. Não colocamos nada em prática, hoje sei que era uma forma de conviver com aquele buraco que estava sendo aos poucos cavado nos nossos peitos sem que nada pudéssemos fazer além daquelas pás inúteis de areia de sonhos.
            Um dia antes da família do Daniel viajar, ficamos sós na casa dele, porque a mãe tinha que resolver alguma coisa da burocracia da casa deles. Foi nesse dia que nós tivemos nossa primeira vez. Quase morri de vergonha quando ele tirou minha blusa e não consigo lembrar como foi mesmo que fiquei sem o restante da roupa. Lembro mesmo, e intensamente, dos olhos negros dele nos meus enquanto ele pesava o corpo dele em mim; lembro muito do cheiro dele, das gotas de suor que brilhavam na testa dele e talvez na minha enquanto nos explorávamos na nossa estreia; lembro-me do gosto do Daniel na minha boca, mesmo horas depois enquanto fingidamente assistíamos ao que quer que fosse que estivesse passando na TV esperando a mãe dele chegar; ele tinha gosto de saudade, de paixão adolescente, de biscoito de arroz e de vontade que durasse mais um pouquinho; lembro muito do cabelo que caía no olho; da pele branca, mas que estava rosada naquele momento, não sei se do calor, da timidez que ele nunca me contou se sentiu ou da falta de jeito que nem eu nem ele tínhamos devido à nossa inexperiência.
            Não foi mágico como se conta nos filmes americanos, nem pornográfico como se conta nos filmes brasileiros, foi íntimo, dolorido física e metafisicamente e teve gosto de “tchau”.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

1996


            Mais um ano letivo começava e eu não podia fazer a menor ideia de que surpresas ele me preparava. “Aninho chato”, eu ia resmungando enquanto seguia pelo caminho tão conhecido que talvez já tivesse até minhas pegadas.
            Mas nada seria como no ano anterior quando conheci e perdi minha melhor amiga e meu grande amor, ambos tão eternos e valiosos que nem sabia o que ia fazer com tanto sentimento sufocado dentro de mim.
            A amiga, querida Carolainne (e escrevia assim mesmo!), havia viajado para um festa no interior, qualquer uma dessas vaquejadas, e perdido a vida na viagem de volta. Só havia me restado algumas fotografias, pouquíssimas, pois até então eu não apreciava posar e ser fotografada. Ficaram também as risadas, os choros, as conquistas e as aulas de biologia perdidas enquanto nos escondíamos pela biblioteca. Dentro de mim restou também um coração em cacos que nunca mais se colaria. Era o que eu pensava.
            O amor veio depois, quase como um analgésico. A tragédia com a amiga fez com que um monte de gente se aproximasse de mim com ares de pena na mesma medida que eu as fiz se afastar, o que era minha especialidade. Não julgava o caráter de ninguém, nem para saber se era sincero o pesar ou somente uma pena mal fingida, disso tudo nada me interessava, mas ele insistiu, perseguiu, se preocupou e me acompanhava calado pelo trajeto tão conhecido que eu fazia após as seis aulas de todas as manhãs. Lá íamos nós dois, eu e o Daniel, no caminho da minha casa, todos os dias até que o ano letivo terminasse.
            Ele era paciente demais. Tolerante e nunca se exasperava com as minhas constantes tentativas de afastá-lo. Ouviu meus desabafos e meus xingamentos, os palavrões que eu gritava nas ruas desertas do nosso bairro quando a dor saudosa da amiga extrapolava os limites do peito. E foi ele que me fez dar a primeira risada após muitos meses de luto introspectivo. Na hora, quase fiquei com raiva dele, mas após alguns segundos de surpresa, tive um desses raros momentos epifânicos dos personagens da Clarice Lispector e entendi. Era com ele que eu queria ficar em todos os meus momentos, pois aquele rapazinho lindo, de cabelinho muito preto e escorrido pelos olhos, também queria ficar comigo, queria rir com ele e talvez chorar, mas nós não sabíamos que seria por tão pouco tempo.
            O caminho para casa ficou mais curto, às vezes o fazíamos completamente calados, em outros ríamos sem saber direito o porquê, em outros dias sentávamos em alguma calçada e esquecíamos por alguns minutos que tínhamos que chegar em casa antes que nossas mães chamassem a polícia, afinal não era uma época de celulares. Lembro que, independente do humor, parecia mais curto o trajeto porque queríamos ficar cada vez mais tempo juntos.
            Até que um dia, enquanto íamos caminhando lentamente lado a lado, tão lentos que poderíamos contar nossos passos, ele, sem tirar os olhos dos cadarços desamarrados, me disse:
            - Meu pai foi transferido. Você sabe, já te disse várias vezes que ele ama o serviço militar, né?! Dessa vez vamos morar em Natal, qualquer hora eu também vou para a Marinha, é meu destino.
            Não sei direito como me senti, acho que parecia mais como um tornado nas minhas entranhas ou um dia de guerra no Afeganistão dentro do meu estômago. Não sabia direito como organizar meus pensamentos, e no final, antes de entrar em casa, apenas disse:
            - Boa viagem!