Agora, nesse novo ano
escolar, me sentia deslocada no meio daquele monte de
gente conhecida e estranha.
Não queria amigos nem amores, tinha gradativamente me
afastado do Daniel, as
cartas rareavam, minhas e dele. Talvez inconscientemente eu não quisesse
prolongar o inevitável, pois amores à distância na adolescência não podem dar
certo... ou podem? Resolvi que não pagaria para ver. Queria sobreviver ao
último ano na escola sem marcas e sem dores, queria apenas o vazio no peito que
Carolainne e Daniel deixaram que chegava a quase ser doce de tão intenso.
Frequentava assiduamente as aulas, caminhava
dolorosamente pelas mesmas
ruas do bairro, e levava a
vida morna que havia escolhido levar. Não queria amigos nem inimigos, era fria,
não dava a mínima para o que quer que acontecesse na sala de aula
ou na escola. Eu não me
julgava brilhante mas mantinha as notas altas para me livrar o mais cedo
possível da rotina escolar, aquele ambiente me trazia muitas lembranças e
elas nem sempre eram
saudáveis.
No meio dessa suposta calmaria, minha tia resolveu que
comemoraria o
aniversário dela. Achei
meio infantil da parte dela e comentei apenas com minha mãe já decidindo não
ir, aleguei que seria péssima companhia e enchi a cabeça dela com
inúmeros argumentos. Mas,
no final, não teve jeito, dona Socorro quando queria não
ouvia nada do que lhe
diziam, apenas impunha:
- Ok, filha, você vai sim. Já chega de luto, de cara
inchada de tanto chorar, de
música deprê do rádio. E,
no fim das contas, é apenas uma festa. Você vai.
E bateu o martelo. Sofri até o dia da festa. Debatiam-se
dentro de mim inúmeras ideias desde traição ao luto pela Carolainne até traição
ao amor por Daniel. Apenas
sabia que a dona Socorro,
minha mãezinha, não se daria por vencida e eu iria.
Coloquei um vestido preto (sim, iria, mas manifestaria
indignação!) e fomos. No meio da festa, todo mundo dançando, comendo, bebendo,
dando risada, algumas primas que não via a algum tempo que insistiam que eu
fosse me divertir, alguns olhares
vazios que enviei como
resposta e, subitamente, alguém senta na minha mesa vazia.
- Oi!
Nem olhei.
- Oi! – pensei que devia ser um desses primos chatinhos
que acham que, porque me viram andando de calcinha quando tinha 5 anos, são
íntimos.
- Você estuda na minha sala.
Anh?
- Ok. – então, meu bem, você deve saber que não gosto de
conversa, pensei mas não disse, apenas virei em sua direção e lancei meu olhar
vazio.
- Pensei que você era mal-humorada só na escola. – disse
ele disfarçando muito um ar de riso.
- E quem você pensa que é para julgar meu humor? – ah,
era uma maneira muito própria de me divertir e eu sabia fazer aquilo com
maestria: afrontar, fazer recuar e rir
da cara de espanto de quem
quer que fosse. Se ele queria...
- Ah, foi bom você perguntar. Faz tempo que quero dizer
para você quem eu
sou, mas você não dá
nenhuma chance, nem sei como aquele carinha conseguiu.
Carinha? Sério? Ele acha que vai falar assim do Daniel?
Naquele momento tinha que escolher a melhor estratégia “espanta-chato”: o
silêncio mortal ou a habilidade
linguística. Resolvi pela
primeira opção.
- Ok – ele continuou olhando profundamente nos meus olhos
– eu sabia que
você ia fazer isso. Ou isso
ou me humilhar com essa sua língua ferina, mas hoje, quando vi você entrar por
aquela porta, decidi que era meu dia de sorte e eu não ia desperdiçar. Bom, meu
nome é Fernando, eu sento do lado oposto ao seu na sala. Aliás, de lá dá para
ver perfeitamente todas as suas reações enigmáticas ao que se passa na sala.
Sento na
mesma cadeira desde o ano
passado, mal pude acreditar quando tive catapora no período das provas finais e
acabei perdendo o ano. Era a Providência: eu repetiria de ano na sua sala!
Nesse momento eu não sabia gritava para minha mãe para
ela ligar para a polícia ou se esperava mais revelações do meu novo amigo
doente mental sentado ao meu
lado.
- Você estuda na mesma sala que eu? – repeti sabendo a
resposta, mas queria
entender a informação. Que
diabos ele está fazendo aqui?
- Isso mesmo, sou amigo da sua prima. – e apontou para a
menina de vestido
prateado no meio da pista.
Sim e daí? Detesto esse abismo infinito nas conversas,
parece que ninguém tem mais nada a dizer e fim, todo mundo levanta e vai
embora. Mas ele não parecia disposto ao fim.
- Sabia que quando a gente se apresenta a outra pessoa
costuma responder
dizendo seu nome e ambas
apertam as mãos? – ele estava rindo enquanto falava e
observei as covinhas no seu
rosto. Gente, isso é coisa de criança! Bebês têm covinhas na bochecha enquanto
sorriem, não esses doentes mentais que atrapalham sua noite de
fossa no aniversário da
tia.
- Você não estuda na minha sala? Então, pelo menos três
vezes por dia, nas
trocas de professor, você
ouve quando eles dizem meu nome.
- Ok, Mariana, eu sei seu nome e olho para você todas as
vezes que o professor
faz a chamada. É engraçado!
Você faz quase uma careta! Gostaria de saber porque.
- Não gosto que olhem para mim.
Aí ele não riu, ele gargalhou! Como assim? Ele jogou a
cabeça para trás e seu
cabelo espetado sacudia no
ar com o balanço do corpo, ao mesmo tempo em que
segurava a barriga.
- Você parece minha irmãzinha. Ela também faz birra
quando não gosta de
alguma coisa.
Definitivamente, ele era louco! Eu, fazendo birra! Ok,
hora do nocaute e do
“hasta la vista, baby”, já
dei chance demais para esse moço.
- Bom – eu disse enquanto levantava e pegava minha bolsa
em cima da mesa–
não foi um prazer saber da
sua existência, boa noite e até nunca mais!
Inesperadamente, ele segurou minha mão contra a mesa, com
força demais
quase esmagando meus dedos.
- Não, senhora, você não vai agora. Levei muito tempo
esperando e respeitando seu tempo de luto e enfado com o mundo. Senta aí, deixa
de ser boba, vamos conversar! Ou você vai dançar ao som da Jovem Guarda que
está na pista? Sua mãe não parece
querer ir embora agora.
Olha como ela está se divertindo! E você não vai estragar a
noite dela, né? Além disso,
você fica linda fazendo bico, não me prive dessa visão.
Fiquei atordoada, após meses e meses alimentando meu
equilíbrio, buscando sobreviver na selva dos meus sentimentos, e vem esse moço,
para não dizer outra coisa, e
me tira do sério desse
jeito em poucos minutos? No ritmo em que processava as
informações na minha mente,
ia sentando.
- Já pode deixar o sangue circular na minha mão! – falei
alto demais.
- Oh, desculpa, perdi a noção da força. Mas a culpa é sua
querendo sair correndo assim de mim, nem fiz nada ainda. – havia um tom de
graça e ameaça mal disfarçada
na voz dele.
Queria analisar o discurso dele, saber o que havia por
trás daquele interesse
súbito na minha “birra”. Eu
não faço birra! Não sou mais criança! Mas eu não sabia o
que dizer, de repente as
palavras tinham sumido, traiçoeiras! Fiquei então perdida
avaliando o rosto
bronzeado, surfista talvez, o cabelo espetado e sem o gel que a
maioria dos meninos da
nossa idade estavam usando, mas eu devo ter sido detalhista
demais na minha avaliação,
pois ele percebeu:
- Algo errado? – e passou a mão no rosto. Coitado, em duas
palavras me deu
cartas para jogar, não
deveria ter demonstrado insegurança, baby, eu posso ser cruel, é o que sei
fazer de melhor, pois o mundo me ensinou como é não ter piedade. E estou
apenas começando.
- Tem sim. – ok, ele vai morrer na dúvida, ficar calado o
resto da noite ou sair
correndo no meio de uma
desculpa esfarrapada, assim espero.
Mas ele não era tão facilmente manipulável como os que já
tinham tentado se
aproximar e tinham sido
rechaçados. Ele era impossível!
E então, ele aproximou demais o rosto do meu, fechou os
olhos e disse:
- Tira!
Anh? Ele não está jogando meu jogo, ele sequer está se
dando conta que estou
jogando com ele, aliás, que
quero jogá-lo para bem longe de mim, se possível em outra galáxia.
Insuportável!
Mas agora, perto demais, pude perceber que ele não tinha
uma marca sequer de
espinhas, que seu perfume
era muito bom e que seus cílios tinham uma cor entre
castanho claro e cobre. Ah,
que raiva! No próximo segundo eu tinha levantado rápido
demais para que ele me
segurasse e ele ficou lá sentando, plantado feito uma batata no
asfalto em pleno
meio-dia... Estou fazendo comparações estranhas! Saí à procura da
minha mãe pronta para
implorar para irmos embora, ia inventar cólicas, dores na cabeça ou até mesmo
um ataque de epilepsia, se fosse preciso, pois aquele moço estava me
incomodando e perto demais
da minha muralha da China tão bem construída.
Foi quando ouvi no microfone do DJ:
- Queridos, é hora dos parabéns!
Sério? Sério mesmo?
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