sábado, 22 de dezembro de 2012

1996 (parte III)


            Agora, nesse novo ano escolar, me sentia deslocada no meio daquele monte de
gente conhecida e estranha. Não queria amigos nem amores, tinha gradativamente me
afastado do Daniel, as cartas rareavam, minhas e dele. Talvez inconscientemente eu não quisesse prolongar o inevitável, pois amores à distância na adolescência não podem dar certo... ou podem? Resolvi que não pagaria para ver. Queria sobreviver ao último ano na escola sem marcas e sem dores, queria apenas o vazio no peito que Carolainne e Daniel deixaram que chegava a quase ser doce de tão intenso.
            Frequentava assiduamente as aulas, caminhava dolorosamente pelas mesmas
ruas do bairro, e levava a vida morna que havia escolhido levar. Não queria amigos nem inimigos, era fria, não dava a mínima para o que quer que acontecesse na sala de aula
ou na escola. Eu não me julgava brilhante mas mantinha as notas altas para me livrar o mais cedo possível da rotina escolar, aquele ambiente me trazia muitas lembranças e
elas nem sempre eram saudáveis.
            No meio dessa suposta calmaria, minha tia resolveu que comemoraria o
aniversário dela. Achei meio infantil da parte dela e comentei apenas com minha mãe já decidindo não ir, aleguei que seria péssima companhia e enchi a cabeça dela com
inúmeros argumentos. Mas, no final, não teve jeito, dona Socorro quando queria não
ouvia nada do que lhe diziam, apenas impunha:
            - Ok, filha, você vai sim. Já chega de luto, de cara inchada de tanto chorar, de
música deprê do rádio. E, no fim das contas, é apenas uma festa. Você vai.
            E bateu o martelo. Sofri até o dia da festa. Debatiam-se dentro de mim inúmeras ideias desde traição ao luto pela Carolainne até traição ao amor por Daniel. Apenas
sabia que a dona Socorro, minha mãezinha, não se daria por vencida e eu iria.
            Coloquei um vestido preto (sim, iria, mas manifestaria indignação!) e fomos. No meio da festa, todo mundo dançando, comendo, bebendo, dando risada, algumas primas que não via a algum tempo que insistiam que eu fosse me divertir, alguns olhares
vazios que enviei como resposta e, subitamente, alguém senta na minha mesa vazia.
            - Oi!
            Nem olhei.
            - Oi! – pensei que devia ser um desses primos chatinhos que acham que, porque me viram andando de calcinha quando tinha 5 anos, são íntimos.
            - Você estuda na minha sala.
            Anh?
            - Ok. – então, meu bem, você deve saber que não gosto de conversa, pensei mas não disse, apenas virei em sua direção e lancei meu olhar vazio.
            - Pensei que você era mal-humorada só na escola. – disse ele disfarçando muito um ar de riso.
            - E quem você pensa que é para julgar meu humor? – ah, era uma maneira muito própria de me divertir e eu sabia fazer aquilo com maestria: afrontar, fazer recuar e rir
da cara de espanto de quem quer que fosse. Se ele queria...
            - Ah, foi bom você perguntar. Faz tempo que quero dizer para você quem eu
sou, mas você não dá nenhuma chance, nem sei como aquele carinha conseguiu.
            Carinha? Sério? Ele acha que vai falar assim do Daniel? Naquele momento tinha que escolher a melhor estratégia “espanta-chato”: o silêncio mortal ou a habilidade
linguística. Resolvi pela primeira opção.
            - Ok – ele continuou olhando profundamente nos meus olhos – eu sabia que
você ia fazer isso. Ou isso ou me humilhar com essa sua língua ferina, mas hoje, quando vi você entrar por aquela porta, decidi que era meu dia de sorte e eu não ia desperdiçar. Bom, meu nome é Fernando, eu sento do lado oposto ao seu na sala. Aliás, de lá dá para ver perfeitamente todas as suas reações enigmáticas ao que se passa na sala. Sento na
mesma cadeira desde o ano passado, mal pude acreditar quando tive catapora no período das provas finais e acabei perdendo o ano. Era a Providência: eu repetiria de ano na sua sala!
            Nesse momento eu não sabia gritava para minha mãe para ela ligar para a polícia ou se esperava mais revelações do meu novo amigo doente mental sentado ao meu
lado.
            - Você estuda na mesma sala que eu? – repeti sabendo a resposta, mas queria
entender a informação. Que diabos ele está fazendo aqui?
            - Isso mesmo, sou amigo da sua prima. – e apontou para a menina de vestido
prateado no meio da pista.
            Sim e daí? Detesto esse abismo infinito nas conversas, parece que ninguém tem mais nada a dizer e fim, todo mundo levanta e vai embora. Mas ele não parecia disposto ao fim.
            - Sabia que quando a gente se apresenta a outra pessoa costuma responder
dizendo seu nome e ambas apertam as mãos? – ele estava rindo enquanto falava e
observei as covinhas no seu rosto. Gente, isso é coisa de criança! Bebês têm covinhas na bochecha enquanto sorriem, não esses doentes mentais que atrapalham sua noite de
fossa no aniversário da tia.
            - Você não estuda na minha sala? Então, pelo menos três vezes por dia, nas
trocas de professor, você ouve quando eles dizem meu nome.
            - Ok, Mariana, eu sei seu nome e olho para você todas as vezes que o professor
faz a chamada. É engraçado! Você faz quase uma careta! Gostaria de saber porque.
            - Não gosto que olhem para mim.
            Aí ele não riu, ele gargalhou! Como assim? Ele jogou a cabeça para trás e seu
cabelo espetado sacudia no ar com o balanço do corpo, ao mesmo tempo em que
segurava a barriga.
            - Você parece minha irmãzinha. Ela também faz birra quando não gosta de
alguma coisa.
            Definitivamente, ele era louco! Eu, fazendo birra! Ok, hora do nocaute e do
“hasta la vista, baby”, já dei chance demais para esse moço.
            - Bom – eu disse enquanto levantava e pegava minha bolsa em cima da mesa–
não foi um prazer saber da sua existência, boa noite e até nunca mais!
            Inesperadamente, ele segurou minha mão contra a mesa, com força demais
quase esmagando meus dedos.
            - Não, senhora, você não vai agora. Levei muito tempo esperando e respeitando seu tempo de luto e enfado com o mundo. Senta aí, deixa de ser boba, vamos conversar! Ou você vai dançar ao som da Jovem Guarda que está na pista? Sua mãe não parece
querer ir embora agora. Olha como ela está se divertindo! E você não vai estragar a
noite dela, né? Além disso, você fica linda fazendo bico, não me prive dessa visão.
            Fiquei atordoada, após meses e meses alimentando meu equilíbrio, buscando sobreviver na selva dos meus sentimentos, e vem esse moço, para não dizer outra coisa, e
me tira do sério desse jeito em poucos minutos? No ritmo em que processava as
informações na minha mente, ia sentando.
            - Já pode deixar o sangue circular na minha mão! – falei alto demais.
            - Oh, desculpa, perdi a noção da força. Mas a culpa é sua querendo sair correndo assim de mim, nem fiz nada ainda. – havia um tom de graça e ameaça mal disfarçada
na voz dele.
            Queria analisar o discurso dele, saber o que havia por trás daquele interesse
súbito na minha “birra”. Eu não faço birra! Não sou mais criança! Mas eu não sabia o
que dizer, de repente as palavras tinham sumido, traiçoeiras! Fiquei então perdida
avaliando o rosto bronzeado, surfista talvez, o cabelo espetado e sem o gel que a
maioria dos meninos da nossa idade estavam usando, mas eu devo ter sido detalhista
demais na minha avaliação, pois ele percebeu:
            - Algo errado? – e passou a mão no rosto. Coitado, em duas palavras me deu
cartas para jogar, não deveria ter demonstrado insegurança, baby, eu posso ser cruel, é o que sei fazer de melhor, pois o mundo me ensinou como é não ter piedade. E estou
apenas começando.
            - Tem sim. – ok, ele vai morrer na dúvida, ficar calado o resto da noite ou sair
correndo no meio de uma desculpa esfarrapada, assim espero.
            Mas ele não era tão facilmente manipulável como os que já tinham tentado se
aproximar e tinham sido rechaçados. Ele era impossível!
            E então, ele aproximou demais o rosto do meu, fechou os olhos e disse:
            - Tira!
            Anh? Ele não está jogando meu jogo, ele sequer está se dando conta que estou
jogando com ele, aliás, que quero jogá-lo para bem longe de mim, se possível em outra galáxia. Insuportável!
            Mas agora, perto demais, pude perceber que ele não tinha uma marca sequer de
espinhas, que seu perfume era muito bom e que seus cílios tinham uma cor entre
castanho claro e cobre. Ah, que raiva! No próximo segundo eu tinha levantado rápido
demais para que ele me segurasse e ele ficou lá sentando, plantado feito uma batata no
asfalto em pleno meio-dia... Estou fazendo comparações estranhas! Saí à procura da
minha mãe pronta para implorar para irmos embora, ia inventar cólicas, dores na cabeça ou até mesmo um ataque de epilepsia, se fosse preciso, pois aquele moço estava me
incomodando e perto demais da minha muralha da China tão bem construída.
            Foi quando ouvi no microfone do DJ:
            - Queridos, é hora dos parabéns!
            Sério? Sério mesmo?

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