sábado, 22 de dezembro de 2012

1996 (com Fernando)


            Mariana acordou na manhã seguinte com muita dor de cabeça. A festa tinha durado até às duas da manhã e ela nem sabia direito de onde tinha tirado tanta força para dançar naquela sandália de salto enorme. Bem, se ela soubesse que ia dançar, tinha usado algo mais confortável, mas tinha sido obrigada pelas circunstâncias.
            O rapazinho, Fernando, não tinha dado opção, pois a perseguiu durante os “parabéns para você” e demonstrou que não ficaria sozinho o resto da noite: ou ela ficava lá e conversava com ele – sendo intimidada por ele, talvez essa fosse a melhor forma de definir – ou ia para pista de dança, que ela descobriu muito rápido não ser a praia dele, quando a prima dela veio convidá-lo para dançar. Elegantemente, ele recuou diante do convite:
            - Não posso, não sei dançar, sou muito desastrado.
            Foi o momento perfeito, ela se livraria daquela conversa inconveniente naquele momento e foi quase pulando com a prima para a pista. Ufa!
            Aproveitaria o momento da dança para tentar processar o ocorrido, mas a música era alta demais e agitada na mesma proporção. Na volta para casa, a mãe bombardeou: quem era o rapaz, já se conheciam, como ele era lindo, parecia muito educado, blá blá blá... e veio a dor de cabeça. Como a mãe podia pensar que aquele moleque inconveniente era educado?
            Ainda bem que era véspera de feriado prolongado e não teria que ver o moço – para não chamar de outra coisa – na escola. Coitada da Mariana! Não tinha nem para quem contar, uma melhor amiga, talvez, mas Carolainne... Carolainne já não estava mais aqui, do lado dela para compartilhar a inquietação no peito; para ouvir a descrição do rosto do rapaz, quase perfeito pela ausência de espinhas típicas da idade dos adolescentes; para comparar o cabelo sem gel, diferente do que todos os rapazes estavam usando, com algum ator norte-americano; a amiga, com certeza, saberia que perfume era aquele que ele estava usando, meio amadeirado meio cítrico; e as lágrimas escorreram pelo rosto de Mariana como um açude que sangra.
            No meio das lágrimas, surgiu o rosto de Daniel, tão frágil e tão distante; viu os olhos dele tão meigos, tão dóceis, tão pacientes, totalmente diferentes dos olhos agressivos e indiscretos de Fernando; quase ouviu a voz de Daniel dizendo seu nome, mas era a de Fernando que estava mais próxima e recente. E quando percebeu que era absurdo demais o que estava fazendo, quase comparando os dois como se fosse um leilão, resolveu tomar o remédio que mãe entrou no quarto oferecendo e dormiu. Dona Socorro sabia que aquela não era a hora de encostar a filha na parede e arrancar dela o que estava sentindo, o que a fazia chorar. Era apenas hora de dormir.
            Mariana passou o resto do feriado calada, saía do quarto para ajudar a mãe com algum afazer doméstico ou comer – saco vazio não para em pé, filha! – mas depois voltava para o quarto e ia estudar. Ela tinha uma meta, não passaria no colégio tempo mais do que o necessário e estabelecido pela escola, nada de recuperação! Sairia dali o mais rápido possível, principalmente agora que teria que dividir o mesmo espaço com aquele... Aquele... Bom, ele mesmo!
            Na segunda-feira, não sabia direito o que estava fazendo, mas não queria mais fazer o mesmo caminho que tinha feito com Daniel no ano anterior, aquilo a deixava deprimida demais. Não que ela quisesse gargalhar, mas pararia de regar a semente da depressão no seu coração, por outro lado não iria podá-la, deixaria lá, quieta.
            Ao entrar na sala de aula, ao invés de fazer o que sempre fazia e entrar de cabeça baixa sentando na terceira cadeira da fila da parede, instintivamente olhou para o lado oposto da sala e deu de cara com ele sorrindo. Mas não para ela, talvez ele nem tivesse visto que ela tinha chegado, ele sorria para uma menina sentada na fila ao lado dele. Conversava tão animado que ela pode olhar para ele alguns instantes antes que a menina se desse conta e olhasse para Mariana, que, envergonhadíssima, desviou o olhar e sentou.
            Ficou inquieta durante todas as aulas antes do intervalo. Ao responder a chamada, tentou pensar que cara fazia, ele tinha comentado sobre isso. Como assim? Que cara era essa? Droga!
            Ao toque do intervalo, quase todos os alunos saíam da sala, mas ela sempre ficava. E ele veio sentar na cadeira à frente da que ela estava, meio de lado, meio de frente, meio dando atenção a ela, meio se preparando para ir embora, ela não sabia direito o que ele queria. Mas era hora de encenar a moça forte dos filmes de faroeste.
            - Oi, Mariana, como foi seu final de semana? – ele falava tão tranquilo e ela ali, se remoendo por dentro, para poder dar um sorriso falsamente despreocupado.
            - Oi. – respondeu friamente de meio sorriso no rosto, foi o máximo que conseguiu.
            - Como foi seu feriado? – ele queria uma conversa normal de amigos? Ela não podia acreditar.
            - Não é da sua conta. – disse sem sorriso mesmo.
            - Nossa, tão bonita e tão mal criada! Sua mãe sabe que você não coloca em prática as aulas de etiqueta que ela te dá? – e Mariana olhava de perto a graça do sorriso dele, tão perto, perto demais. Poderiam até ser amigos se tivessem se conhecido em outro momento, mas agora não, ela não queria correr o risco de perder mais ninguém.
            - Não é da sua conta, entendeu? Você não deveria estar aqui, você podia estar conversando com os seus amigos ou amigas, sei lá. Podia me deixar em paz como eu sempre fiquei, na minha.
            - Em paz... Sei, entendo seu ponto de vista, mas acho que não. Eu não tenho nada melhor para fazer e, além disso, não acho que você anda muito em paz. Seu nariz está avermelhado e inchado, podia apostar que você passou o feriado chorando e que eu fui o único momento divertido nesse tempo.
            Mariana pensou enquanto preparava a próxima resposta para deixá-lo sem graça e enxotá-lo dali, mas não conseguia articular nada que fizesse sentido. Racionalizando, era verdade, ele estava esfregando a verdade na cara dela. Passou mesmo o feriado chorando escondido no quarto enquanto tentava estudar e lembrava amargamente da amiga e do grande amor. Os poucos sorrisos que deu foram lembrando o jeito que ele tinha chegado à mesa para falar com ela, da força com que tinha segurado a mão dela e da forma tímida com que ele disse que não sabia dançar. Refletiu, ponderou, resolveu não responder.
            - Mari – vou te chamar assim – eu não vou te fazer nada de ruim. Para de olhar para mim como se eu fosse uma ameaça. Só quero ficar por perto, te ajudar quando precisar, te dar um ombro para chorar, não é legal chorar sozinho, disso tenho certeza. Acho você linda e quase te beijei na festa, mas prometo que não faço, não até eu saber que você também quer. Ia te roubar um beijo, mas foi melhor mesmo que você saísse correndo, às vezes sou muito impulsivo e me arrependo depois, podia ter sido minha última chance naquela noite, ainda bem que foi diferente. Eu posso?
            Ahn? Mariana não entendia aquele rapaz, ele era difícil de ler, diferente das outras frágeis pessoas que tinham tentando se aproveitar da dor dela. E agora ele estava fazendo uma proposta irresistível e tinha falado alguma coisa sobre beijo, mas ela não sabia direito o que tinha sido, era informação demais. O que era mesmo que ele estava pedindo autorização a ela?
            - Posso ficar por perto sem correr o risco de você querer me chutar como faz com todo mundo? Bom, posso até deixar você me chutar, mas saiba que vou revidar.
            - Tanto faz. – ela não sabia direito porque tinha respondido assim, mas devia ser curiosidade, ele era atrevido, parecia saber exatamente o que queria. E ela não estava acostumada a lidar com pessoas assim, a não ser a mãe, mas com ela não tinha jeito, era fazer e pronto.
            - Bem, acho que posso conviver com isso, por enquanto, é melhor que um “não”, mas vou exigir mais de você, além desse seu mau humor. Ele te deixa feia e você não é.
            Literalmente, Fernando deixava Mariana sem respostas.
            Decidido, ele atravessou a sala e pegou o caderno deixado na cadeira do lado oposto da sala. Agora ele sentaria ali, do lado dela da sala, na cadeira de trás.
            - Já tem alguém sentando aí. – ela ainda tentava escapar da proposta.
            - Tinha. – e ele pegou a mochila que estava na cadeira que ele queria sentar e colocou em outra, ao lado, e que já estava ocupada. Como aquilo ia se resolver quando desse o sinal encerrando o intervalo?
            De uma maneira bem discreta a coisa foi arranjada, Mariana não entendeu direito porque, mas quando os alunos voltaram para a sala de aula ao final do intervalo, simplesmente o garoto que ela julgava estar ocupando a cadeira que Fernando sentava agora, pegou a mochila e sentou em outra cadeira vazia. Enquanto isso, Fernando assobiava tranquilamente uma canção de uma banda que ele adorava: Engenheiros do Hawaii. Como ele podia ser tão tranquilo? Mariana se pegou querendo saber coisas demais sobre ele.
            O resto das aulas daquela manhã foram assim: o professor falava alguma coisa engraçada, Fernando dava uma gargalhada; algum aluno fazia um comentário desnecessário, ele retrucava baixinho só para Mariana ouvir, e ela queria rir e não rir ao mesmo tempo; passou bilhetinhos por baixo do braço dela com letras de música; respondia baixinho quando o professor fazia alguma pergunta, mas não demonstrava querer participar da aula; era inquieto e deixava Mariana desconfortável, afinal ela tinha passado muito tempo tentando aquietar o próprio coração, mesmo sem êxito algum.
            Ao final das aulas ela tinha um monte de anotação no caderno e ele, nenhuma. 

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